O escritor, autor de quadrinhos, cantor, compositor mineiro Rafael Senra, mora atualmente no Amapá, atuando trambem como professor de Literatura na graduação e mestrado em Letras da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Editor e organizador da Coleção Além da Letra da Editora Hucitec.
Já lançou seis álbuns autorais, seja em sua carreira solo ou com o codinome de Alfa Serenar. Na literatura já lanço livros de contos, romances, poemas além de ilustrações e quadrinhos. Obras em quadrinhos: Ana Crônica (independente, 2009), Lonely Hearts (internet, 2009), Balada Sideral (editora Bartlebee, 2014), Cobra Sofia (editora Marca de Fantasia, 2021). Livro acadêmico: Dois Lados da Mesma Viagem, (editora Bartlebee, 2013). Olhar de Bicicleta (editoras Verter/Bartlebee, 2017), livro de contos, ensaios e crônicas.
Filmes: Uma Prosa de Sócrates (curta metragem. direção: Rafael Senra e André Monteiro, 2016), (Ex)perneando no Berço (curta metragem. direção: Rafael Senra, 2014), Whisky com Soda (curta metragem. direção: Victor Klier, 2012. Rafael Senra trabalha como ator).
Lançou os álbuns: Canções de São Patrício (Progshine Records, 2017), Reenvolver (Progshine, 2021). Álbuns lançados como Alfa Serenar: The Mood Machine and Other Furnitures (Progshine/TBTCI, 2019), VIA (2020), Cobra Sofia e Outras Lendas Amazônicas (2022). O Sereno da Noite (2023).
Segue abaixo entrevista exclusiva com Rafael Senra para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 24.04.2023:
01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal?
Rafael Senra: Nasci no dia 17/03/1982 em Congonhas, Minas Gerais. Registrado como Rafael Senra Coelho.
02) RM: Fale do seu primeiro contato com a música.
Rafael Senra: Na infância, tive breves aulas de Teclado, e a única coisa que elas me renderam foi o aprendizado do Tema da Vitória do Ayrton Senna (Eduardo Souto Neto). Nessa época, nada indicava que eu me enveredaria pelo caminho da música.
Mas a adolescência chegou, e passei a juntar dinheiro para comprar discos. Foi a época das primeiras bandas, e eu quis adentrar nesse ecossistema. Para isso, aprendi a tocar bateria com cerca de 14 anos (em 1996). Então li em algum lugar que o baterista do Yes, Alan White, sabia tocar Piano, e ele acreditava que isso fez dele um baterista melhor. A premissa fazia sentido, e comecei a fazer aulas de violão clássico. Até que, antes mesmo de saber a maioria dos acordes, comecei a compor alguns pequenos temas, e senti enorme satisfação nessa prática. Abandonei a Bateria, e a partir dali o Violão se tornou meu principal instrumento.
Na verdade, o prazer da criação de canções me fez permanecer lidando com música mesmo após as experiências de juventude. Isso me mantém ainda motivado com essa atividade, e devo confessar que todo o meu esforço como intérprete envolve a necessidade de lançar essas canções ao mundo. Se outra pessoa estivesse gravando e divulgando minhas composições, talvez eu sequer me atrevesse a gravar discos.
03) RM: Qual sua formação musical e/ou acadêmica fora da área musical?
Rafael Senra: Meu primeiro instrumento foi a Bateria, para a qual tive algumas aulas introdutórias. Aos quinze anos de idade (em 1997), tive três meses de aulas de Violão Clássico, o que me ajudou a desenvolver o dedilhado da mão direita. Com cerca de dezoito anos de idade (em 2000), tive aulas de guitarra. E aos vinte e três anos (2003), fiz um semestre de Violão Clássico no Conservatório de São João del Rei – MG, chegando a aprender leitura de partitura, mas não pratiquei, e acabei esquecendo. Depois disso, só fui voltar a ter aulas de música aos vinte e oito anos (em 2008), quando aprendi técnicas de interpretação vocal.
Fora da área musical sou professor adjunto de Literatura na Universidade Federal do Amapá e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFAP (PPGLET/UNIFAP). Sou Doutor em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mestre e Graduado em Letras pela Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
04) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente. Quais deixaram de ter importância?
Rafael Senra: No início da década de 1990, como boa parte das pessoas da minha idade, comecei a prestar atenção no que acontecia no universo musical. Era o auge do movimento grunge, e obviamente tornei-me fã de bandas como Nirvana e Pearl Jam. Nessa época, eu assistia religiosamente um programa chamado Kliptonita, que passava na Record apresentado por Serginho Caffé e gravava todos os episódios em fitas de vídeo.
Entretanto, apesar do programa apresentar tantas bandas que estavam na moda, logo percebi que me entusiasmava mesmo com algumas mais antigas, todas elas compreendidas em um gênero chamado de rock progressivo. Esse estilo teve seu auge na primeira metade dos anos 70 e alguns dos discos de maior sucesso de todos os tempos, como Dark Side of the Moon, do Pink Floyd; que comemora 50 anos em 2023, pertencem a esse gênero.
Porém, com a ascensão do punk em 1976, a imprensa musical norteamericana empreendeu um esforço notável em tratar o progressivo como uma espécie de “desvio” na cronologia da música popular, e desde então a imprensa mundial tratou de demonizar qualquer gravação ou artista que traz elementos progressivos. Por conta disso, com exceção dos grandes artistas de décadas anteriores, hoje em dia o rock progressivo sobrevive através de um nicho ainda restrito, apesar de seus fãs e apreciadores extremamente dedicados e fieis.
No meio em que cresci, ouvíamos de tudo. Eu e vários dos meus amigos, éramos leitores assíduos de revistas como a Bizz, publicação cujos jornalistas e colaboradores nutriam um desdém especial pelo rock progressivo. Assim, por muitos anos, ouvi meio que em segredo discos de artistas como Genesis e Camel. Isso não me impediu de assistir a um show do Yes em 1998 no estacionamento do Minas Shopping, em Belo Horizonte – MG, ou de trocar discos de rock progressivos com alguns amigos – quase todos mais velhos que eu. Mas não deixei de ouvir os estilos mais em voga nos meus meios sociais da época, como grunge, rock, pop, heavy metal, reggae, indie, dentre outros.
Apesar de ser muito influenciado por rock progressivo, eventualmente ouço muita coisa de pós-punk, pop em geral, além de outras vertentes do rock: hard rock, new wave, AOR, etc. Ouço muitos artistas também de new age e ambient music. Dentro da MPB, o núcleo mais profundo das minhas influências envolve os artistas ligados ao Clube da Esquina (Milton Nascimento, Lo Borges, Beto Guedes, Flavio Venturini). E com certeza sou um beatlemaníaco!
05) RM: Quando, como e onde você começou sua carreira musical?
Rafael Senra: Na adolescência no final dos anos 90, comecei tocando com bandas de Congonhas, Minas Gerais. As bandas éram predominantemente dedicadas à covers, e praticamente todas eram dedicadas a tocar pop rock brasileiro (o chamado Brock dos anos 1980).
Nessa fase, a banda de maior destaque que tive se chamava Mahadeva, que durou de 2001 a 2002 e tinha para a época uma formação inusitada na cena musical de Congonhas; com duas integrantes mulheres e dois homens. Chegamos a ganhar um festival de música local e também gravamos um single, com uma composição minha chamada “Som de Sonho”; cuja gravação original está disponível no meu Bandcamp: https://rafaelsenra.bandcamp.com/track/som-de-sonho .
Na universidade, fiz parte de bandas de outros estilos, como o grupo Pedra da Lua, mais acústico e dedicado a tocar MPB, ou a banda Encruzilhada, dedicada a tocar hard rock dos anos 1970 e que me levou de volta à bateria, meu primeiro instrumento.
06) RM: Quantos CDs lançados?
Rafael Senra: Em 2023, chego à marca de seis álbuns lançados. Solo: Canções de São Patrício (2017) e Reenvolver (2021).
Com o projeto Alfa Serenar: The Mood Machine and Other Furnitures (2019); VIA (2020); Cobra Sofia e outras Lendas Amazônicas (2022); O Sereno da Noite (2023).
07) RM: Como você define seu estilo musical?
Rafael Senra: Na carreira solo, meus discos tem estilos variados. O primeiro, Canções de São Patrício (2017), é dedicado ao folk, enquanto Reenvolver (2021) traz uma mescla de gêneros.
Já o projeto Alfa Serenar originalmente trazia composições no estilo post-rock, no primeiro álbum, The Mood Machine and Other Furnitures (2019), e, depois de um segundo álbum de transição: VIA (2020), que oscila entre a música ambient, new age e rock progressivo. O projeto se torna dedicado ao rock progressivo brasileiro sinfônico, na linha de artistas como O Terço, Sagrado Coração da Terra, 14 Bis. Esse é o estilo dos discos mais recentes do Alfa Serenar, Cobra Sofia e outras Lendas Amazônicas (2022) e O Sereno da Noite (2023).
08) RM: Você estudou técnica vocal?
Rafael Senra: Estudei técnica vocal em meados de 2009, com o professor Ciro Canton, que foi aluno da conhecida preparadora vocal mineira Babaya Morais. Com ele, aprendi técnicas mais voltadas para o canto popular, com enfoque na MPB.
09) RM: Qual a importância do estudo de técnica vocal e cuidado com a voz?
Rafael Senra: Creio que o estudo e os cuidados são vitais para todos aqueles que querem ter alguma longevidade nesse meio. Sabemos de cantores como Axl Rose, que, apesar do talento notável, cantavam sem nenhuma técnica, e que perceberam muito cedo que tinham causado danos irreparáveis a si mesmos por conta disso.
Para quem quer manter o alto nível das performances ao longo dos anos, é imprescindível ter técnicas básicas, como aprender a respirar pelo diafragma, não forçar a voz, não forçar a garganta, dentre outras práticas. Da mesma forma, inúmeros cuidados, como os de aquecer a voz antes e depois, dormir bem ou se alimentar bem são absolutamente necessários.
10) RM: Quais as cantoras (es) que você admira?
Rafael Senra: Creio que, no geral, meus critérios para escolher um cantor nem sempre envolvem a magnitude da interpretação. Se fosse assim, eu deveria preferir uma Maria Bethânia ou uma Zizi Possi em comparação com Rita Lee, e, no entanto, me pego mais ouvindo Rita. Creio que, por ser compositor (ou cantautor), tenho maior admiração pelos cantores que compõem seu próprio material, gente como Guilherme Arantes ou o pessoal do Clube da Esquina.
Prefiro ouvir “Como nossos Pais” com Belchior do que com Elis Regina. E acho que Chico Buarque é o melhor intérprete de suas canções. Claro que tal predileção não me impede de apreciar profundamente uma série de intérpretes do cancioneiro nacional.
Tenho uma admiração especial pelos cantores do Clube da Esquina (Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Flávio Venturini, etc.), que cantam com registro de voz de cabeça, timbre limpo, com muito uso de falsetes. Dentro do rock progressivo, são vários cantores para citar: Peter Gabriel, Phil Collins, Richard Sinclair, Greg Lake, Roger Hodgson, Fish, Steve Hogarth, David Gilmour, Peter Hammill, Jon Anderson, John Wetton, Annie Haslam, etc.
Diferente até mesmo de boa parte dos fãs de rock progressivo, adoro Geddy Lee como cantor. Também admiro muito vários cantores ligados ao pós-punk e à new wave, como Elizabeth Fraser (Cocteau Twins), Lisa Gerrard e Brendan Perry (Dead Can Dance), Robert Smith (The Cure), Paddy McAloon (Prefab Sprout) e tantos outros.
As cantoras Joni Mitchell, Sade e Enya ocupam um patamar diferenciado no meu conceito, são hors concours. Outros cantores que admiro e que ocorrem mencionar: Christine McVie, David Crosby, Neil Young, Sting, Pedro Aznar, Spinetta, Mercedes Sosa, Jose Maria Blanc, Moya Brennan, Roland Orzabal, Demis Roussos, Michael McDonald, David Sylvian, Jeff Buckley, Bono Vox. E, claro: John Lennon, Paul McCartney, George Harrison.
11) RM: Como é seu processo de compor?
Rafael Senra: É completamente intuitivo minha forma de criar música, as vezes flui depois de muito trabalho e tentativas frustradas, mas também pode acontecer após uma ideia inicial inspirada. Essa ideia que funciona como catalizador pode ser melódica ou lírica. As vezes, um conceito ou uma frase me levam para o Violão; enquanto que, em outras ocasiões, é a melodia que me faz compor.
Antigamente, eu tocava a mesma música mil vezes, e ia acomodando tudo nesse processo de repetição. Hoje em dia, sou mais sistemático, e faço um mapeamento da métrica, cuidando para que a letra esteja bem assentada na própria melodia, que seja cantável ou “assobiável”, que não tenha sílabas tônicas nos lugares errados, que tenha uma escolha de palavras boa o bastante.
12) RM: Quais são seus principais parceiros de composição?
Rafael Senra: Tenho inúmeros parceiros, quase todos letristas. O parceiro com quem tenho um maior número de composições talvez seja Kadu Mauad – ele mesmo o mais próximo que já vi de um compositor “profissional”, esmerado, que persegue a tarefa de composição como uma dedicação de vida.
Um letrista com quem tenho tido maior contato; por ele ser professor universitário como eu, é Luiz Henrique Garcia. Meu primeiro parceiro de composições chama-se Pablo Gobira, e, apesar de não compormos nada juntos há anos, conseguimos compilar um número respeitável de canções. Outros parceiros que me ajudaram na tarefa de trazer canções ao mundo são Gabriel Oliveira, Guilherme Claudino, Aline Santos, Alan Flexa, dentre outros.
13) RM: Quais os prós e contras de desenvolver uma carreira musical de forma independente?
Rafael Senra: Acho que a mesma palavra resume os prós e os contras: autonomia. Você está por sua própria conta. Isso quer dizer que você pode compor o que quiser, como quiser, sem precisar prestar contas à ninguém. Por outro lado, ninguém vai te promover ou te proteger, e você mesmo precisa correr atrás. Acho uma pena que a maior parte dos artistas musicais em atividade sejam independentes, visto que isso não é mais uma escolha, e sim uma condição do atual contexto.
Outro dado lamentável é que muitos desses artistas não praticam o melhor lado de ser independente, que é a possibilidade de serem eles mesmos. Vários artistas querem ser enquadrados de algum modo, e perseguem tudo aquilo que lhes parece ser a “fórmula do sucesso”. Vejo isso muito ao meu redor. Bandas que querem tocar no exato estilo do Pearl Jam, ou do Angra, ou da Legião Urbana, enfim, os exemplos são inúmeros. Querem recriar em seu trabalho autoral algum período ou cena da música mundial que mais lhes tenha cativado, sem muitas vezes perceber que tais artistas inspiradores foram fruto de seu tempo e de suas contingências.
E esses grandes nomes da música não se fizeram sozinhos – suas gravações e produções foram fruto de um esforço coletivo de produtores, empresários, etc. Até mesmo por isso, boa parte dos artistas bem sucedidos de outrora não conseguem repetir a popularidade que tiveram antigamente.
14) RM: Quais as estratégias de planejamento da sua carreira dentro e fora do palco?
Rafael Senra: Não sou um músico em tempo integral, portanto minhas estratégias são demasiadamente modestas. Já me dediquei a aprender técnicas de marketing digital e estratégias variadas de divulgação, mas me debati com o grande dilema do músico independente: para crescer, você precisa dispor boa parte do seu tempo livre à essas demandas. Optei por dedicar meu tempo de fato a atividades de criação, que faço em várias áreas, como música, histórias em quadrinhos, literatura, atividades editoriais, acadêmicas, dentre outras.
15) RM: Quais as ações empreendedoras que você pratica para desenvolver a sua carreira musical?
Rafael Senra: Divulgo meus trabalhos em minhas redes sociais, sem investimento financeiro, e meus modestos crescimentos ocorrem de maneira orgânica. Como tenho tido uma produção autoral frequente, sinto que a cada lançamento consigo aumentar minha base de fãs, o que me deixa bem satisfeito.
16) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento de sua carreira musical?
Rafael Senra: A internet facilitou que o artista tenha acesso direto ao público. Entretanto, o público perdeu aquela figura do “atravessador” ou “curador”, ou seja, pessoas, publicações ou instituições que lhe traziam uma espécie de guia de audição. Esse atravessador poderia ser o jornalista musical, mas também poderia ser o radialista, o apresentador, o funcionário da loja de discos, sem contar que as gravadoras também poderiam cumprir esse papel, e, porque não, até mesmo a MTV. A música popular não possui mais qualquer tipo de curadoria em larga escala. Alguns sites e influenciadores digitais fazem isso, mas sempre atuando em nichos.
Gravar um disco tornou-se algo mais acessível, e a internet democratizou a circulação. Muita gente achou que isso significaria o fim daquilo que se chamava de mainstream, a corrente dominante da cultura de massa. Mas os setores mais comerciais da indústria musical se adaptaram bem à nova realidade. E os critérios para eleição dos grandes artistas – aqueles que aparecerão nos portais de notícias, que ganharão prêmios, que aparecerão na TV aberta etc. – obedecem cada vez a critérios comerciais, em detrimento dos critérios estéticos. É essa a realidade com que o ouvinte musical moderno se depara.
E, para tornar esse panorama ainda mais complexo, a internet te traz todo um arcabouço musical do passado, uma cronologia audiovisual da história da música popular. Por um lado, isso permite que qualquer pessoa possa empreender suas pesquisas (formais ou informais), mas, por outro lado, o novo artista independente precisa também lidar com a concorrência dos artistas antigos (alguns até extintos) nessa Torre de Babel atemporal que é a internet.
17) RM: Quais as vantagens e desvantagens do acesso à tecnologia de gravação (home estúdio)?
Rafael Senra: A vantagem, como no caso da internet, é a democratização do processo. Como disse Nelson Motta, hoje em dia qualquer notebook tem mais recursos de gravação do que os maiores estúdios do Brasil nos anos 1970. Entretanto, pagamos um preço por isso. A gravação analógica trazia possibilidades que o digital ainda não alcançou. Se o digital traz maior clareza e praticidade, o analógico oferecia uma sonoridade muito especial, com frequências próprias, enfim, questões que são difíceis de mencionar sem entrar num jargão técnico empolado e chato.
Sem contar que o analógico trazia também uma mentalidade e uma postura diferente. As dificuldades de gravação e edição forçavam os artistas a serem mais apurados, a ensaiar mais, e a valorizar cada etapa da produção. Todos os envolvidos nessa tarefa se empenhavam de corpo e alma para a coisa se realizar adequadamente. Aprendemos a duras penas que a facilidade nem sempre é a melhor mestra do artista.
18) RM: No passado a grande dificuldade era gravar um disco e desenvolver evolutivamente a carreira. Hoje gravar um disco não é mais o grande obstáculo. Mas, a concorrência de mercado se tornou o grande desafio. O que você faz efetivamente para se diferenciar dentro do seu nicho musical?
Rafael Senra: Tenho uma opinião bem particular sobre essa questão da diferenciação, e não sei se muita gente concordará comigo. Mas acho que já estamos distantes da era das novidades significativas, aquelas que são evidentes e que são notadas até pelos leigos.
Antigamente era muito fácil entender porque um artista se distinguia. E não digo isso apenas por causa da concorrência. Afinal, ao contrário do que se pensa, na década de 1960, 70 ou 80, o mercado tinha também um número grande de artistas buscando um lugar ao sol. Eu sei disso porque faço muitos “garimpos” de material antigo, e fico pesquisando discos antigos de artistas desconhecidos. É impressionante como esses garimpos nunca se esgotam, e você sempre encontra uma banda de um estilo de décadas passadas que soa genial e da qual você nunca ouviu falar. Ou seja, se as pessoas se destacavam antigamente, isso acontecia apesar da concorrência.
Acho que o aspecto que mais impede os jovens artistas de se destacarem hoje em dia é o fato de que quase todas as fórmulas já foram testadas. Quem está começando agora estará inevitavelmente fadado a ser comparado com algum nome de destaque do passado. As vezes a comparação é justa, e as vezes nem tanto.
E como se diferenciar nesse contexto? É a pergunta de um milhão de dólares. Mas deixo essa descoberta para os olheiros de gravadora, se é que eles ainda existem.
Da minha parte, acredito na expressão individual, e na possibilidade de um artista forjar sua mistura particular de influências e linguagens. Se o objetivo é se destacar, esqueça o que digo e faça como a Lady Gaga, que se vestiu de carne em uma premiação da MTV de 2010. Sempre tem alguma melancia perdida por aí esperando para ser pendurada no pescoço.
19) RM: Como você analisa o cenário do Rock no Brasil. Em sua opinião quais foram as revelações musicais nas últimas décadas? Quais artistas permaneceram com obras consistentes e quais regrediram?
Rafael Senra: Não sou a melhor pessoa para apontar revelações e destaques na cena musical brasileira. Um jornalista musical citaria nomes como Rodrigo Suricato ou Anavitória, mas eu dedico meu tempo a pesquisar velharias.
Enquanto meus amigos estão curtindo o disco novo do Arcade Fire, estou descobrindo alguma banda progressiva do Leste Europeu. Sei que é um hábito estranho, mas, enfim, apesar de minhas exigências excêntricas, adoro conversar sobre todo tipo de música com as pessoas ao meu redor.
Retomando a pergunta, acho que os artistas que se mantiveram mais consistentes são aqueles que buscaram depurar o que fazem de melhor. Em vez de citar nomes, vou trazer situações de comparação.
Veja, por exemplo, Paul McCartney, que deixou de lado as melhores características de sua obra autoral para tentar soar contemporâneo. Quem diria que o compositor de “For no One” e “She’s Leaving Home” estaria fazendo duetos com Kanye West no século XXI? Parece que o velho Paul se sente melhor buscando uma afinidade com o mercado atual do que seguindo sua musa.
Eu preferiria vê-lo no caminho ambicioso que ele trilhou em outros trabalhos, até mesmo alguns recentes, como Chaos and Creation in the Backyard, de 2005. A título de comparação, veja um disco recente de um contemporâneo de Paul: No Pier Pressure, lançado por Brian Wilson em 2015. Ali, o ex-Beach Boy depura o que fez de melhor no seu passado, não se furtando de soar por vezes melancólico, saudosista, buscando um som sofisticado e não necessariamente comercial. Acho muito mais coerente e interessante.
20) RM: Quais as situações mais inusitadas aconteceram na sua carreira musical (falta de condição técnica para show, brigas, gafes, show em ambiente ou público tosco, cantar e não receber, ser cantado, etc)?
Rafael Senra: Infelizmente, apesar de eu não ter uma experiência larga como intérprete ao vivo, já vivi inúmeras situações pouco glamorosas na música. Principalmente quando cantei no formato Voz e Violão em Bares e Restaurantes. Nunca me senti desrespeitado pelo público, e as situações mais chatas vinham mesmo dos contratantes e donos das casas de show. Já tive que lidar com cachês que não eram pagos, ou pagos em porcentagem ínfima, mas o pior era quando essas pessoas se mostravam desrespeitosas.
A situação mais chata que vivi nesse sentido foi paradoxal. Foi em 2010. Certa noite, eu tocara na maior casa de show na qual me apresentei, ganhei meu maior cachê de músico, e o público me trouxe uma resposta significativa. Era a noite dos sonhos de todo músico, e eu sentia que tinha subido de nível na carreira. Até que, no dia seguinte, recebi uma visita do dono do estabelecimento em que toquei. Ele sentiu falta de um pedestal de caixa de som, e pensou “provavelmente o músico da noite deve ter levado consigo”. Apesar daquilo ser uma acusação de roubo, ele quis bancar o “fofinho” e disse de um modo até simpático: “será que você não o levou por engano?”. Só que eu sei ler nas entrelinhas, e, além do mais, ninguém leva algo tão pesado para casa por distração.
Várias pessoas que tinham assistido o show tentaram convencer o sujeito de que não fazia muito sentido ser eu o responsável pelo furto. Pena que o cara descartou todas as hipóteses plausíveis e se ateve a um palpite estúpido. Cogitei devolver o cachê ou até comprar um pedestal para acalmar esse sujeito, mas desisti ao perceber que isso seria uma confissão de culpa. Esse episódio me custou algumas amizades, e também me levou a desistir de ser um crooner de covers acústicos em Bares e Restaurantes.
21) RM: O que lhe deixa mais feliz e mais triste na carreira musical?
Rafael Senra: O que me deixa mais feliz provavelmente é perceber as pessoas ouvindo e apreciando minhas músicas. É o motivo pelo qual estou nessa seara: compartilhar impressões estéticas e existenciais, e crer que isso possa fazer sentido para outras pessoas.
O que me deixa mais triste é perceber que o Brasil está anos-luz distante do que acontece em países como Suécia. Lá, o governo oferece todo tipo de auxílio para quem quer trabalhar na indústria cultural – ajuda financeira, logística e de infraestrutura, ações que fizeram desse pequeno país escandinavo uma potência cultural moderna. O Brasil navega no extremo oposto dessa lógica. Nosso país é tratado por sua elite como um mero fornecedor de matéria prima, como um país de commodities, que não teria nada para oferecer ao mundo além de soja e minério de ferro.
Infelizmente, vários setores ideológicos do nosso país não incentivam a carreira artística, e, em muitas situações, até mesmo a criminalizam; vide os ataques à Lei Rouanet, feitos por pessoas que não são capazes sequer de entender que quem doa o dinheiro para os artistas nesse caso é a iniciativa privada (e, em alguns casos, pessoas físicas também podem investir).
22) RM: Existe o Dom musical? Como você define o Dom musical?
Rafael Senra: Meu primeiro professor de violão, Nilo Sérgio, dizia que algumas pessoas têm ritmo e outras não têm. As que não têm ritmo podem desistir, pois nunca conseguirão se desenvolver na música. Os que têm ritmo poderão apresentar níveis diferentes de talento. Nesse caso, o que realmente fará a diferença é o empenho da pessoa.
Esse mesmo professor me dizia que muitos dos seus alunos mais talentosos largaram a vida da música, muitas vezes por não dar valor ao que lhes chegava de maneira tão fácil. Enquanto isso, a maioria dos alunos mais esforçados costumavam alcançar objetivos notáveis. Foi ótimo para mim ouvir um conselho tão sábio ainda no início da minha caminhada, e devo dizer que isso é ainda mais verdade para mim hoje em dia. O esforçado mediano é capaz de chegar mais longe que o virtuoso acomodado.
23) RM: Qual é o seu conceito de Improvisação Musical?
Rafael Senra: Penso na improvisação como a capacidade do músico demonstrar o nível de execução fluida e imediata que ele consegue compartilhar em tempo real. Essa certamente não é a definição que uma enciclopédia daria para o ato de improvisação, mas é o que me ocorre comentar agora.
24) RM: Existe improvisação musical de fato, ou é algo estudado antes e aplicado depois?
Rafael Senra: Acredito na improvisação musical como algo válido e legitimamente espontâneo. Mas não me considero um improvisador hábil. Se o fosse, talvez não estivesse gravando discos de rock progressivo; talvez fizesse discos como os do Pat Metheny Group, dos quais gosto profundamente. Mas o rock progressivo é geralmente amparado na composição prévia, e nem tanto no improviso. Minhas capacidades se assentam melhor nesse tipo de parâmetro.
25) RM: Quais os prós e contras dos métodos sobre Improvisação musical?
Rafael Senra: Não considero ter um conhecimento técnico suficientemente desenvolvido para opinar de maneira relevante sobre essa questão. Mas sinto falta de artistas que desenvolvam sua própria linguagem musical e que sejam capazes de improvisar de um modo único.
Quando o guitarrista mineiro Toninho Horta quis estudar em Berklee College of Music, seu colega Pat Metheny, o dissuadiu, dizendo que a metodologia de Berklee poderia comprometer a originalidade do brasileiro. Hoje em dia, Berklee tem módulos dedicados a analisar e ensinar as harmonias do Toninho. Quem dera tivéssemos mais músicos dedicados nessa tarefa de desenvolver padrões próprios de musicalidade, seja para a composição, harmonização ou para a improvisação.
26) RM: Você acredita que sem o pagamento do jabá as suas músicas tocarão nas rádios?
Rafael Senra: Antigamente, as rádios contavam com DJs (disc jockey) e apresentadores como John Peel, que tocava no seu programa os nomes cujos trabalhos apreciava, além de divulgar esses discos e músicas para outras rádios. Hoje em dia, nosso ecossistema de rádios é mais impessoal e infértil nesse sentido, fato sobre o qual só posso lamentar.
27) RM: O que você diz para alguém que quer trilhar uma carreira musical?
Rafael Senra: Serei aqui um “anti-coach”, ou seja, responderei de modo filosófico e nada prático: siga seus instintos. Tente entender o que é precioso para você de um modo profundo, para além dos modismos. Você tem a resposta para a maioria das perguntas que lhe ocorrerem – basta ficar em silêncio e ouvir. Você pode até pedir orientações, mas as melhores pessoas que você encontrará nesse meio não são aquelas que te induzirão às respostas que elas defendem, e sim aquelas que te ajudarão a ouvir a si mesmo.
28) RM: Festival de Música revela novos talentos?
Rafael Senra: Depende do tipo de festival de música. Na década de 60 e 70, se chamavam de festivais de música aqueles eventos que apresentavam candidatos para serem avaliados por um júri, e no final seriam eleitos os finalistas e os premiados em diversas categorias. Esse formato de festival perdeu sua centralidade na indústria fonográfica brasileira, e sobrevive em pequenos nichos localizados.
Eu particularmente não gosto muito desse modelo, por tratar arte como se fosse esporte, insuflando também um espírito de competitividade. Quando, na verdade, o que promove o crescimento de uma cena é justamente o espírito de colaboração mútua, como podemos notar em movimentos como a Tropicália ou o Clube da Esquina.
Já os festivais de música contemporâneos, que mais parecem uma feira de artistas e atrações diversas, me parecem sim poder revelar novos talentos, cada um na medida do seu alcance midiático e de quantidade de público.
29) RM: Como você analisa a cobertura feita pela grande mídia da cena musical brasileira?
Rafael Senra: Hoje em dia, a cobertura feita pela grande mídia da cena musical brasileira ocorre de um modo pulverizado, sobretudo no espaço da internet, sem que tenhamos veículos mais localizados e centralizados, como já foram a MTV ou a Revista Bizz, por exemplo. Isso dificulta que tenhamos unanimidades dentro da cena nacional, mas, por outro lado, permite maior democratização.
Não temos hoje em dia a centralização de poder que os críticos tiveram no passado, e, além do mais, hoje em dia os leitores geralmente podem responder aos críticos no próprio espaço de divulgação, em espaços de comentários dos sites e portais. Desse modo, os “formadores de opinião” não podem mais ser tão arbitrários e nem tentar impor sua opinião pessoal em cima do público.
Mas sinto falta de um certo jornalismo musical que valorizava a pesquisa extensa, a reflexão e a análise de um artista, sob o ponto de vista histórico e também estético. Alguns nomes, como Pedro Alexandre Sanches, Ricardo Alexandre, Antonio Carlos Miguel e outros conseguiam realizar essa notável tarefa mesmo dentro dos veículos da grande mídia.
Já na internet, apesar de ver alguns teóricos musicais que perseguem um ideal de crítica e análise mais aprofundados – como Tulio Vilaça, Acauam Oliveira e outros –, no geral prevalecem as resenhas rápidas e a repetição do senso comum.
No mais, louvo muito iniciativas como a da revista musical RitmoMelodia, que abrem espaço para novos músicos e autores, trazendo também diversas informações de interesse para todos os amantes e profissionais do setor musical.
30) RM: Qual a sua opinião sobre o espaço aberto pelo SESC, SESI e Itaú Cultural para cena musical?
Rafael Senra: Acho que espaços como esses representam verdadeiros respiros para modalidades de música que já não se veem contempladas pela grande mídia. Foi-se o tempo em que um artista poderia manter propostas estéticas ambiciosas e conjugar isso com uma exposição em larga escala.
Alguns grupos conservadores falam mal de artistas do “circuito SESC”, acusando-os de serem pretensiosos demais para um público mais vasto. Mas é importante lembrar que, em décadas anteriores, as grandes gravadoras investiam nesse segmento de artistas, e reservavam uma cota generosa de divulgação para eles.
Gravadoras como a Odeon pagavam sua conta com artistas feito Cauby Peixoto, e, com esse lucro, também investiam em nomes como Milton Nascimento – que, apesar de venderem menos, nunca paravam de vender. Ou seja, eram estratégias em curto e longo prazo. E que, para além de parâmetros econômicos, fomentava uma cena cultural mais diversa e fértil.
Portanto, me parece injusto culpar os artistas por esse cenário. Se vivemos a monocultura do sertanejo universitário, isso não se deve ao público, e sim à imposição de um único gênero para uma massa de consumidores. Nesse sentido, o circuito contemplado por instituições como as do Sistema S (Sesc, Sesi, Senac, Senai) acabam assumindo um papel de preservação de nichos ainda receptivos a propostas que ambicionam um mínimo de profundidade e sofisticação.
31) RM: Apresente seus livros lançados.
Rafael Senra: Dois Lados da Mesma Viagem (2013) é minha dissertação de mestrado sobre a identidade de Minas Gerais nas músicas de Milton Nascimento e do Clube da Esquina. Apresentação de Fernando Brant, prefácio de Mário Alves Coutinho. Entrevistas com os saxofonistas Nivaldo Ornelas e Chico Amaral). Livro atualmente esgotado, porém com previsão de reedição por nova editora.
Olhar de Bicicleta (2017), são crônicas de minha autoria pelas editora (s): Verter & Bartlebee com 214 páginas e formato 12 cm ×12 cm, o tamanho de um encarte de CD. Preço: 20 reais. Para adquirir, envie um email para [email protected] ou baixe gratuitamente pelo link: https://drive.google.com/file/d/1-2ikHsYAbOUW71u9H8bHxyLy2ja-jtkf/view
Livros organizados por mim: A Linguagem dos Quadrinhos (2020). Organização: Gian Danton, Rafael Senra, Matheus Moura. Diponivel gratuitamente através desse link: https://www.mediafire.com/file/mtsadp0ms3f9gk2/A+Linguagem+dos+Quadrinhos+(1).pdf/file
Para adquirir a versão impressa, só mandar um e-mail para [email protected] . O valor da versão impressa é dez reais (apenas para pagar o frete).
Cultura Pop (2020). Cultura pop, comunicação e linguagem é uma antologia organizada por Ivan Carlo Andrade de Oliveira (Gian Danton) e Rafael Senra. Divididos em artigos e ensaios, os textos abordam os mais diversos temas dentro do leque da cultura pop.
No âmbito dos quadrinhos, começamos com uma análise da adaptação da história de Conan “A torre do elefante”, passando pelo conceito de Gynoid no mangá “Hyper future vision”, e até uma interpretação da jornada do herói a partir da saga “Estação das brumas” em Sandman. No campo da música, temos uma abordagem semiótica da capa do álbum “Artpop” da cantora Lady Gaga, e, na interface entre literatura e outras mídias, uma análise de adaptações da obra “The Witcher”.
Para completar o livro, os ensaios tratam de representações da Grande Depressão em dois quadrinhos, além das obras de Chris Ware e, para concluir, uma reflexão sobre o papel de Jim Shooter no comando da editora Marvel Comics. Link: https://marcadefantasia.com/livros/veredas/culturapop-comunicacao-linguagem/culturapop-comunicacao-linguagem.html
Obras em quadrinhos: Ana Crônica (independente, 2009), Lonely Hearts (internet, 2009), Balada Sideral (editora Bartlebee, 2014), Cobra Sofia (editora Marca de Fantasia, 2021).
32) RM: Quais os seus projetos futuros?
Rafael Senra: A maneira pela qual organizo meus projetos é pouco ortodoxa: vou gravando algumas pré-produções de canções de maneira aleatória. Ao vislumbrar uma coleção de canções que pareçam apontar para uma direção, vou preparando o material para figurar como um disco coeso (e, as vezes, conceitual). Se eu for tomar esse método como base para prever meus próximos projetos, creio que estou a meio caminho de um disco solo, com canções mais acessíveis e, ao mesmo tempo, repletas de elementos inusitados, na linha de Raul Seixas ou dos Mutantes. O tempo dirá.
33) RM: Rafael Senra no dia 08/09/2024 anunciou em forma de artigo que aposentou de show ao vivo.
Algumas pessoas me conhecem como escritor. Outras como autor de quadrinhos. E há quem me conheça como músico. O fato é que, mesmo sabendo que o mundo valoriza os especialistas, nunca abandonei a maior parte das atividades artísticas que faço, e o motivo é que eu gosto de cada uma dessas tarefas. Deveria justificar, não é?
Teoricamente sim – o problema é a nossa consciência crítica, que as vezes é mais crítica que consciente. Você não deixa de pensar que, se especializasse em uma só prática, sua vida seria muito mais fácil. Você teria mais possibilidades técnicas, maior chance de reconhecimento, e até poderia sonhar em ser decentemente remunerado.
Mesmo sabendo disso tudo, banquei a vida de multitarefa, sacrificando feriados e fins de semana agindo como um sísifo no meu escritório, equilibrando os malabares e pedalando meu triciclo enquanto soletro em javanês. E ainda faço isso. É uma escolha consciente, que sustento com alegria e sem reclamar.
O que nunca falei tão abertamente foi sobre um fantasma que me assombrou ao longo de muitos anos. Talvez metade da minha vida até agora, devo dizer: A dificuldade de levar meus projetos musicais para os palcos. De tocar ao vivo.
Para ilustrar a longevidade dessa obsessão, lembro que, em 2003, tinha acabado de ingressar no curso de Letras. Vi um colega de turma tamborilando os dedos na carteira ao lado. De imediato, perguntei, com os olhos arregalados: “você é baterista?? Quer montar uma banda comigo?”. Meio acanhado, ele subitamente recolheu seus dedinhos agitados: “calma, cara, eu sou só ansioso mesmo”.
Ao longo desse tempo, eu cheguei a montar várias bandas, a maioria de covers, e umas poucas autorais. Nenhuma delas ficou em atividade por mais de um ano. Acho que poderia escrever um livro cômico sobre minhas desventuras com bandas. Nessa área, acontece meio que uma sincronicidade ao contrário. Quem já leu a história do diretor de cinema Terry Gilliam tentando filmar Dom Quixote sabe do que estou falando. Sempre que eu tentava montava um projeto musical dedicado aos palcos, algo conspirava para que ele implodisse.
Uma das minhas milhões de bandas, Pedra da Lua, tocando na UFSJ em 2005 ou 2006.
Até que me mudei para o Amapá, em 2018, e achei que seria diferente. Na verdade, foi, pois graças aos amigos e profissionais da música que encontrei aqui, consegui gravar vários discos autorais, que tiveram reconhecimento, incluindo duas indicações ao Grammy Latino.
Mas não consegui montar uma banda de apoio para tocar esse material ao vivo. Até convidei uma meia dúzia de pessoas para esses projetos. Uns não tinham tempo, outros aceitaram mas não tiraram as músicas, alguns faltavam aos ensaios, uns nem respondiam as mensagens, enfim, teve de tudo. Até quando tentei montar um power trio a coisa empacou. A sincronicidade reversa não deu trégua nessas duas décadas.
Você deve estar se perguntando “mas será que o Rafael insistiu pra valer nessa história de tocar ao vivo?”. A resposta é: não. Eu insisti, pero no mucho. E perceber isso foi um ponto de virada.
Ao longo dos anos, achei que a história de tocar ao vivo era como uma lei inquestionável do universo. Um axioma talhado na pedra. Quando estava nas filas de banco, ficava regendo arranjos imaginários do meu show onírico. Era, na verdade, um mecanismo de fuga. Mas, para esse mecanismo ser tão estimulante, vem o choque de realidade: ele não podia acontecer. Porque, se fosse real, eu não poderia mais imaginar tão amplamente, não é?
Passei anos pensando de que modo poderia realizar essa história. Mas, ao longo desse tempo, nunca cogitei pra valer se eu deveria realizar; ou, pior: se eu realmente queria.
Então porque insistir nessa aventura quixotesca? Acho que me aferrei com muita intensidade a uma percepção que perdeu o prazo de validade: a ideia de que, para existir na indústria da música, um artista precisa atuar no tripé “gravação-shows-divulgação”. Porque era assim antigamente, né. Quando existia uma indústria, quero dizer. Existiam gravadoras, você tinha um disco produzido pelo Mayrton Bahia, tocava no Faustão, o clipe passava no programa da Sabrina Parlatore na MTV, e depois você dava uma entrevista engraçada para o Jô Soares, e de quebra ganhava uma matéria de capa na Revista Bizz assinada pelo Forastieri ou Pedro Alexandre Sanches.
Sim, é o tipo de pensamento que você elabora na adolescência, e passa os anos carregando como se fosse um ovo sensível, e vai cuidando com carinho desse pensamento delicado, protegendo-o das pessoas impiedosas e do mundo mal lá fora. Só que, você não percebeu, mas o mundo foi mudando ao redor desse pensamento, desse ovo (e ele nem chocou).
Você não percebeu que a pirataria bombardeou o que chamávamos de indústria da música. Enquanto a Bizz e a MTV se tornavam apenas um quadro na parede, como dizia o poema do Drummond, boa parte dos bons músicos migraram para o sertanejo, ou foram tocar covers em barzinho (isso pelo menos eu consegui realizar por alguns anos), ou viraram professores de conservatório, ou montaram estúdios para gravar jingles políticos. Mas o tripé “gravação-show-divulgação” não existe mais para a maioria das pessoas.
Quando a mim, vi a realidade bater na minha porta, até que cheguei no “osso” dessa questão, no seu ponto mais estrutural: ok, eu até gosto de tocar ao vivo. Mas, no fim das contas, o meu barato na música é escrever canções. E ponto. Não faço questão nenhuma de ser eu a cantá-las. Eu me forcei a ser o intérprete desse material, mas sou o primeiro a reconhecer meu caráter canhestro em carregar essa tocha.
Veja só a ironia: esse ano, lançarei um disco novo (a primeira prévia dele saiu hoje, o single Portal da Samaúma, que interpretei ao lado da querida cantora Lara Utzig, da banda Desiderare). Esse trabalho completo de inéditas se chama Sonhando Acordado. Mas é a primeira vez em muito tempo que não sonho acordado sobre como vou interpretar essas músicas num projeto imaginário utópico cósmico doido. E devo confessar que me sinto bem com essa decisão.
Sei que não devo satisfações a ninguém, mas gostaria de explicar um pouco mais profundamente porque cheguei nessa decisão. Pode pular essa parte do texto se quiser (ele acaba logo depois, na verdade).
Vou citar aqui um filósofo oriental do qual gosto muito. Ele se chama Lao Tsé (ou Lao Tzu, tem várias grafias), e viveu cerca de meio século antes de Cristo. Ele escreveu o Tao Te Ching, que é um dos livros mais necessários já escritos.
Para o gerador de imagens do Bing, Lao-Tsé é um velhinho de barbas brancas que passa o tempo pintando cada um de seus M&Ms.
É o tipo de obra que faz a gente querer soar profundo, mas vou falar sobre ela aqui de um modo meio grosseiro, e peço perdão desde já. O fato é: a maioria das pessoas no planeta são tapadas desde a época de Lao Tsé. E, quando completou quarenta anos, o próprio filósofo percebeu por si mesmo que a burrice generalizada não tinha muito remédio. Ele decidiu abandonar seu cargo na biblioteca real e sair pelo mundo, talvez, sei lá, ir vender a sua arte na praia.
A decisão estava tomada, mas ele não contava que um dos soldados do Rei Wen era sem noção e iria empatar o seu caminho. O encarregado disse que só autorizaria a saída da corte caso o notável filósofo redigisse algo que documentasse toda a sua sabedoria para as futuras gerações. Ok, Lao era mesmo um sujeito muito sábio, mas provavelmente não estava a fim de passar mais tempo no meio daqueles néscios. Em três dias, escreveu 81 versos e entregou as páginas ao soldado. Deu no pé e nunca mais voltou à China.
Mesmo escrito na correria, o Tao Te Ching é um livro essencial, uma verdadeira joia literária, poética e existencial. Um de seus poemas é destinado aos que acreditam na ideia de vencer na vida por esforço próprio. Em vez de reforçar essas falácias de coach, Lao Tsé apresenta um conceito que dá nó na nossa cabecinha ocidental: o “não-fazer” (wu-wei).
Basicamente, ele está dizendo que existe um fluxo de acontecimentos passando pela vida de todos nós, como se fosse um rio. E a maior parte das pessoas está remando na direção oposta, enquanto repetem discursos de meritocracia, sacrifício, trabalho árduo e outras frases feitas. Em vez de agir assim, você já tentou apenas flutuar com a maré? Já tentou parar de insistir? Deixar o orgulho de lado, só por um momento? Se sim, o que aconteceu? Deu tudo certo no final?
Ou seja: por que as coisas precisam sempre ser do jeito que você idealizou? A natureza é muito mais bela que os seus planos, e veja como ela é irregular, ela tem formas pontiagudas, que parecem assimétricas, e ela sempre muda, ela está à deriva dos acontecimentos, e, no entanto, não há nada mais bonito. Por que não deixar seu orgulho de lado e permitir que as coisas se acomodem por si mesmas?
Diz o Tao Te Ching:
“Na busca do conhecimento, todos os dias algo é adquirido
Na busca do Tao, todos os dias algo é deixado para trás
E cada vez menos é feito
até se atingir a perfeita não ação”.
E arremata:
“Domina-se o mundo deixando as coisas seguirem o seu curso.
E não interferindo”.
Enfim, o fato é que, por muito tempo, a ideia de tocar ao vivo se tornou um protocolo na minha cabeça. Mas agora deixo os protocolos para o serviço público. Estou muito feliz gravando discos, é uma atividade que faço naturalmente, e que cumpre um ciclo completo para mim.
Além do mais, os irmãos do Oasis finalmente fizeram as pazes. Graças a eles, a Ticketmaster e outras empresas de ingressos não vão falir por culpa da minha aposentadoria dos palcos.
Agradeço por ler essa edição da newsletter. Deixo o convite para que apoie meu trabalho e assine Além da Letra para receber novos textos por email. Por Rafael Senra Coelho
34) RM: Quais seus contatos para show e para os fãs?
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Alfa Serenar (Rafael Senra) – Uirapuru: https://www.youtube.com/watch?v=9sHKnpHzGWg
Playlist do álbum Alfa Serenar – O Sereno da Noite (2023): https://www.youtube.com/watch?v=sVx8wya__DQ
Playlist do álbum Alfa Serenar – Cobra Sofia e outras lendas (2022): https://www.youtube.com/watch?v=U_eDtC92noI&list=PLtfNtknZkMmvdLQ1EZMiRRdRQdvtejX4K
Playlist do álbum Rafael Senra – Reenvolver (2021): https://www.youtube.com/watch?v=aGRVZDeyPa4
Excelente entrevista, uma grande aula,gostei da dica,siga seu próprio instinto. Sempre aprendendo nessas entrevistas…