O primeiro livro biográfico sobre Jackson do Pandeiro foi um trabalho Hercúleo, laborioso e de respeito travada pelos jornalistas Fernando Moura e Antonio Vicente. O primeiro, um paulista que chegou criança na Paraíba e o segundo paraibano do coco. O trabalho levou 8 anos para chegar ao prelo e ser lançado em 2001 pela editora 34 .
Uma biografia no estilo tradicional (leia-se tradicional como obra com potencial de ser definitiva) com início, meio e fim da trajetória pessoal e profissional do “Rei do Ritmo”. Essa biografia foi o encontro profundo com o trabalho do Jackson e com minha história pessoal por conhecer um pouco da história da minha cidade de origem, Campina Grande. O livro mostrar como a perseverança e luta contra todas as adversidades fizeram com que um “matuto pobre – preto – feio de doer” vencesse contra todas as estatísticas e probabilidades de marketing moderno. Sua trajetória foi degrau por degrau. Saiu de Alagoa Grande (fugindo da fome) para Campina Grande (virou artista profissional) depois para João Pessoa (amadureceu como profissional) e de Recife (ganhou status de estrela do rádio na Rádio Jornal do Commércio) e se tornou o primeiro artista nordestino a chegar no “Sul Maravilha – Rio de Janeiro” com sucesso e não refugiado pela seca.
O livro desfaz a lenda, de um homem violento com as mulheres que casou e que conheceu na vida de mulherengo inveterado, “franqueza” que provocou a perda da esposa e parceira profissional Almira Castilho. Mostra qual era relação profissional com os artistas da cena musical nordestina da época, o respeito mútuo com o rei do baião Luiz Gonzaga, mas nada de intimidades. O inferno astral depois da separação de Almira e a forma inusitada e rápida que conheceu e casou com sua segunda e última esposa e parceira profissional Neuza Flores. Ela uma fã que casou com seu ídolo e segurou a barra em tempo de vacas magras da vida desse ícone da música nordestina.
Jackson do Pandeiro viveu e morreu com a mesma simplicidade do José Gomes Filho. Esse livro é extremamente valioso por sua responsabilidade e contribuição jornalística – histórica – memória musical brasileira. Com uma narrativa envolvente faz das mais de 400 páginas um deleite de uma boa leitura.
Segue abaixo a entrevista exclusiva com Fernando Moura para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 01.02.2005:
01) Ritmo Melodia: O que levou vocês a pesquisarem e fazerem um livro sobre o Jackson do Pandeiro?
Fernando Moura: Quando cheguei à Paraíba, ainda criança, entre 8 e 9 anos, minha família foi morar em Campina Grande. Assim como Jackson, coincidentemente, foi lá, entre os aromas, cores e sons das praças e da feira que tive os primeiros e mais consistentes contatos com a fascinante cultura nordestina. Comecei quase do zero, depois do cinzento banho de urbanidade tomado em São Paulo. Foi em Campina que tive acesso regular a Jackson, Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Patativa do Assaré, Coronel Ludugero, Marinês, Genival Lacerda, Antonio Barros. Isso tudo ficou no inconsciente, embaralhado, enraizado. Alguns anos depois, já em João Pessoa e como jornalista, decidi “pagar” uma dívida emocional com a Paraíba, pelo que ela me deu de informação e emoção. Com alguma noção musical, compositor bissexto e apaixonado pela música nordestina, resolvi começar a mapear esse cenário tão rico em um Estado tão pobre. Que fenômeno seria esse?
Logo nas primeiras entrevistas, o nome de Jackson surgiria com uma força surpreendente e nítida influência junto aos entrevistados. Claro que conhecia alguma coisa sobre o “rei do ritmo”, mas precisava ampliar esse conhecimento para poder dar prosseguimento ao trabalho. Depois de muito procurar e não encontrar nada, exceto alguns recortes de jornais, percebi que alguma coisa estava errada. Fiquei intrigado com aquilo e decidi ampliar essa garimpagem. Foram meses sem nenhum resultado. Diante da circunstância e vendo que não conseguiria concluir o mapeamento anterior, resolvi me concentrar em “(re) descobrir” esse gênio perdido. Convidei o amigo e jornalista Antonio Vicente Filho para dividir essa tarefa hercúlea e, oito anos depois, conseguíamos reunir o maior acervo documental, iconográfico e fonográfico sobre Jackson do Pandeiro em todo o país. Não imaginávamos que chegaríamos a isso. Mas sabíamos que havia a necessidade de continuar até onde achássemos que era a hora de reunir tudo em um livro.
02) RM: Quais foram as principais fontes de pesquisas e dificuldades de acesso a materiais escritos e fonográficos?
Fernando Moura: Pelo tempo que levamos para concluir o trabalho, dá pra ter uma dimensão do grau de dificuldades. Não por “egoísmo” ou “ciúme” das fontes. Pelo contrário. Ao longo do trajeto, pelo menos dois outros pesquisadores desistiram de montar uma biografia sobre Jackson quando perceberam que dispúnhamos de um conjunto mais “volumoso” de informações. Por esse lado não tivemos problemas. A família, inclusive, não apenas colaborou como repassou tudo o que dispunham de documentos, fotografias, discos, objetos… Colecionadores, pesquisadores, instituições contribuíram de forma decisiva com esse trabalho. Tanto, que fizemos questão de citar todas as pessoas (e foram centenas) nos agradecimentos do livro. Agora, sem dúvida, a localização de discos, os bolachões, LPs e compactos simples e duplos foi o maior entrave do processo. Mas, acreditamos que chegamos a 98, 99% do repertório dele. Depois do livro lançado, só nos chegaram às mãos quatro músicas de um disco de carnaval. Na segunda edição, essas canções estarão lá. Antes mesmo, talvez, pois estou preparando uma espécie de inventário musical de Jackson. Venho trabalhando nisso desde a montagem da biografia, pois, inicialmente, seria um capítulo específico com a discografia, de “a” a “z”. Mas, pelo volume, inviabilizaria a edição. Resolvemos cortar. Esse material já está 30, 40% pronto.
03) RM: Fale da participação efetiva dos familiares, amigos e companheiros de trabalho de Jackson para realização dessa obra…
Fernando Moura: Ah, essa foi à parte mais saborosa da pesquisa. Os amigos que fizemos e as pessoas que conhecemos que entendem e que amam a música popular brasileira compuseram o pagamento moral do trabalho. Só para você ter uma ideia, tanto Almira Castilho (A sua grande companheira e parceira dos primeiros anos de sucesso) como Neuza Flores (A última mulher), continuam nossas amigas e frequentam nossas casas quando veem a Paraíba. Com Geralda Gomes, a sobrinha criada como filha (e com os outros familiares), a relação extrapolou a amizade e admiração mútuas, para começarmos a trabalhar nos aspectos autorais da obra de Jackson.
04) RM: Vocês tiveram contato com Jackson antes de morrer?
Fernando Moura: Engraçado você perguntar isso, pois muita gente acredita que tivemos acesso direto a Jackson. Mas, infelizmente, não tivemos nenhum contato com ele. Isso, no entanto, não impediu, através da própria pesquisa e de incontáveis depoimentos, que traçássemos um perfil aproximado do homem e do artista. Geralda costuma brincar dizendo que hoje sabemos mais sobre ele do que a própria família. Num sentido técnico, talvez seja. O fato de termos circulado o Brasil garimpando informações ajudou a compor um cenário amplo e crítico sobre o “rei do ritmo”. Confesso que, durante a montagem do texto, sob minha responsabilidade, “conversei” muitas vezes com ele, pedindo uma orientação sobre pontos duvidosos ou linha de conduta. Durante cerca de um ano, dormi e acordei com ele, como um pai ou tio com quem a gente conversa normalmente. Parece coisa de maluco, não? Mas quem se dispõe a realizar um trabalho dessa envergadura não é muito normal não… Hoje estamos “conversando” menos, mas quando tiver que acelerar o texto sobre as músicas, sei que teremos que nos reencontrar. Essa é uma missão – e honraria – que deve nos acompanhar pelo resto da vida.
05) RM: O livro de vocês seguiu a linha tradicional de uma biografia, com o inicio, meio e fim de um personagem, colocando seu tempo e lugares em peso proporcional a contribuição de sua obra. Vocês acreditam que esse livro será uma biografia definitiva de Jackson do Pandeiro?
Fernando Moura: Definitiva, não. Referencial, sim. Como admiradores de sua obra e amantes da memória musical, não podemos querer que um assunto se esgote na primeira tentativa. Além de impossível, seria extremamente mesquinho e fora de propósito. Um personagem com a riqueza de Jackson não se conclui ao primeiro olhar. Luiz Gonzaga, por exemplo – outro dos pilares da música nordestina – já dispõe de mais de quinze livros enfocando sua vida e obra. É evidente que, em meio a tudo isso, tem coisas boas e enfoques oportunistas. Mas, invariavelmente, sempre vem algo novo à tona. Com Jackson também deverá ocorrer algo semelhante. Com nós mesmos deverá acontecer alguma coisa parecida. Há material que ficou de fora da biografia que daria, pelo menos, mais uma outra.
06) RM: Após o conhecimento público dessa obra, vocês tiveram reclamações por parte de pessoas, de fontes ou de quem foi citado no livro por não ter recebido o devido destaque?
Fernando Moura: Não diretamente, mas através de outras pessoas. Alguns poucos compositores, com menor expressividade dentro da obra, gostariam de ter ampliado seu espaço. Isso é natural. Mas na montagem não nos preocupamos com a quantidade de informações, mas sim com a qualidade e comprovação dos dados. Numa biografia, não pode haver uma vírgula ficcional. Tudo tem que ser fato, checado, rechecado e avaliado. O que achamos incongruente ou meramente promocional, não entrou. O que nos preocupava, isso sim, era a família. Como todos sabem, normalmente quando estranhos realizam um trabalho biográfico de uma celebridade, vem à família questionar um ou vários aspectos, gerando até ações e processos. Por isso tivemos o cuidado de gravar todas as entrevistas, documentar todas as opiniões, para evitar problemas editoriais e jurídicos. Além de ser uma obrigação basilar em uma biografia.
07) RM: Hoje, dos personagens mais próximos da vida e obra de Jackson, que vocês citam no livro, quem está vivo?
Fernando Moura: As principais mulheres, Almira, Neuza e Geralda, o irmão Tinda, o radialista Adelzon Alves, o compositor Antonio Barros e seu irmão, o pandeirista Mauro Barros. Muitos outros poderiam ser citados, mas esses foram mais, digamos, substanciosos no repasse informativo, com um olhar mais amplo e atemporal. Infelizmente, Cícero, o irmão mais novo, morreu um mês depois do lançamento do livro. Parece até que o destino havia reservado esse presente para a sua vida e a memória musical brasileira. Foi com ele que tiramos as principais dúvidas, com quem esclarecemos os pontos divergentes e com quem estabelecemos uma “conversação” mais íntima com Jackson. Ele, de certa forma, falava pelo irmão, com propriedade, conhecimento e autoridade. Sentimos muito a partida desse amigo e parceiro. Uma espécie de co-autor do livro. E o mais interessante é que praticamente tudo que ele nos repassou, foi confirmado por uma ou mais pessoas ou por documentos. Bateu tudo. Nem os deslizes ou presepadas do irmão ele deixou de legar. Aliás, nesse aspecto, até parece traço familiar. O próprio Jackson, em diversas entrevistas impressas ou gravadas, não se furtava em comentar aspectos incômodos de sua vida. Era até meio ingênuo nesse campo. Falava o que pensava. Quase chegou a criar um incidente grave com Assis Chateaubriand, seu patrão à época, por conta de uns beijinhos de cumprimento que o conterrâneo poderoso dera em Almira, após uma festa para uns gringos amigos seus. Para o marido, aquilo era uma afronta e quase sai faísca. Esse episódio nós contamos no livro.
08) RM: Vocês tiveram oportunidade de ouvir quantas músicas do repertório do Jackson?
Fernando Moura: Todas que conseguimos localizar, cerca de 415. Depois do livro lançado, um advogado uruguaio, residente em Rivera, nos enviou uma longa carta, relatando sua paixão pela música brasileira, agradecendo pelo livro e apontando mais quatro músicas do repertório carnavalesco de Jackson que não haviam entrado na discografia. Pedi que nos enviasse as gravações e informações complementares e, de fato, não tínhamos (nem a família) conhecimento dessas canções. Vão entrar na segunda edição. Chegaram-nos também alguns jingles eleitorais, gravados exclusivamente para campanhas localizadas, que só tivemos acesso na esteira de lançamentos. Em Aracaju, por exemplo, quando conclui uma palestra, ao final um senhor me presenteou com uma fita k-7 contendo duas dessas músicas de campanha. Um tesouro, que ajuda a compreender melhor o universo musical e sociológico da época de Jackson. Mas esse é um trabalho interminável. Gostaria de estar totalmente errado e que, daqui por diante, aparecesse uma música inédita dele por mês. Esse seria o tipo de erro que não me deixaria angustiado.
09) RM: Na visão pessoal e profissional de vocês Jackson pode ser considerado um gênio em sua arte?
Fernando Moura: A gente dizer isso, fica parecendo cabotinismo, interesse pessoal ou paixão de pesquisador e biógrafo. Antes do livro, muita gente já pensava e dizia isso. Prefiro citar nomes como Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Tárik de Souza e Zuza Homem de Mello que afirmam e reafirmam essa ótica. É recomendável ouvir o que diz Hermeto Paschoal, que chama Jackson de o “santo dos ritmos do planeta”. Agora, mais do que ouvir opiniões, é fundamental que o Brasil ouça o próprio Jackson. Existem pérolas, tesouros praticamente inéditos em sua obra que – sem qualquer exagero – lançam novos olhares (ou ouvidos) na música popular brasileira. Para quem gravou, além da música regional nordestina, sob o espectro do forró, sambas, frevos, rancheiras, maracatus, pontos de macumba e até bossa nova, com originalidade e maestria, não pode ser considerado apenas excelente. É gênio mesmo. Um negro, paupérrimo, analfabeto e nordestino chegar aonde ele chegou não pode ser apenas obra do acaso ou das preferências pessoais de fãs e meia dúzia de estudiosos. Ele está bem acima disso. Na sua linha de trabalho, em seu estilo pitoresco de cantar e tocar o instrumento que lhe deu fama não apareceu mais ninguém desde então. Como não haverá um novo Luiz Gonzaga ou um Noel Rosa ou um Villa Lobos ou um Duke Wellington ou uma Edith Piaff. Isso acontece. São únicos.
10) RM: Corre na boca popular que Jackson, além de mulherengo, era violento com as parceiras fixas ou casuais. Esses fatos são lendas ou verdade?
Fernando Moura: Pura fofoca bizarra. Não dispomos de nenhum registro ou relato que estabeleça algo próximo de uma agressão de Jackson a alguma mulher, antes ou depois de casado, anônimo ou notório. As duas principais mulheres dele, cuja convivência somada dá quase trinta anos de sua existência, estão aí para dar qualquer testemunho. Amigos, parceiros de juventude, companheiros de noitadas continuam vivos para garantir que isso não existiu. Muito pelo contrário. Jackson tinha uma verdadeira veneração pelas mulheres. As que amou e as que nem conheceu. Eventualmente, em alguma canção, pode até dar esse tipo de impressão, mas Jackson não discriminava assunto e na maioria das vezes enveredava pelo cômico. Foi – acho – um dos primeiros a cantar, por exemplo, as cirurgias para mudança de sexo. Em quase todas suas músicas sempre haverá um elemento feminino a costurar a narrativa. Idolatrava a mãe e refletia esse carinho em todas as fêmeas ao seu redor. Agora, não há dúvidas que foi mulherengo. A separação com Almira se efetuou por uma “mijada fora do caco”, como ela mesma costuma dizer. Mas violento com mulheres, desconhecemos totalmente essa invencionice.
11) RM: Na visão de vocês (Fernando Moura e Antonio Vicente), a música de Jackson sobreviveria por mais uma década, caso não tivesse morrido no início dos anos 80, época em que outros ritmos tomaram conta da cena musical brasileira?
Fernando Moura: Se a música de Jackson sobrevive até hoje, vinte e três anos depois de sua morte, é essencialmente pela força do seu canto, do seu ritmo incomum e da capacidade que ele tinha em escolher um repertório sofisticadíssimo para o seu tempo, fundindo sons tribais, crus, belos em sua originalidade, com o refinamento orquestral, distribuindo sonoridades e divisões rítmicas com a mesma desenvoltura com que somos capazes de respirar, dormir, reproduzir ou sonhar. Isso era espontâneo e exclusivo em seu modo de cantar e reproduzir os sons que identificava ao redor. Desde criança, diga-se. Depois apenas aprimorou. A coisa vinha do sangue, meio atávico, desaguando no filho de Flora Mourão com a luminosidade de uma estrela que vai demorar ainda séculos sendo reverenciada e absorvida. É só esperar pra ver se assim não vai ser.
12) RM: Vocês comentam ao final do livro a dificuldade de acervo fonográfico de Jackson. Esse fato é generalizado em relação à memória musical brasileira ou um caso isolado? O que levou a essa falta de material para pesquisadores musicais?
Fernando Moura: Esse é um pecado original que não atinge apenas a memória fonográfica brasileira. Coisa de um país ainda muito jovem e que só agora, com meio milênio, é que começa a amadurecer e voltar os olhos para as origens, a história e o lastro de vida que isso proporciona. Sem falar nos aspectos de inclusão que a cultura, de uma forma geral, revela aos povos que compreendem a importância da preservação de coisas e comportamentos. O lançamento de biografias como a de Jackson e de outras pedras do nosso alicerce musical (basta olhar os inúmeros livros editados pela “34”) é uma prova de que estamos mudando. Não dá para localizar culpados. Preservar o que sobrou é tarefa mais urgente e preciosa do que chorar pelo leite derramado. Vamos aprender com isso e dificultar menos a vida dos futuros pesquisadores e historiadores. Agora, por exemplo, deixar de regravar o repertório desconhecido ou esquecido de Jackson não é mais um erro antropológico, é burrice localizada do mercado fonográfico. Além de poderem prestar um bom serviço ao país, ainda poderiam configurar uma nova tendência de mercado, reincluindo na pauta a verdadeira faceta da música popular brasileira que, apesar da besteirada que tem sido empurrada goela abaixo dos jovens consumidores de hoje, ainda resiste ao tempo e haverá de se impor por suas próprias virtudes. O que tem de gente boa fazendo música de verdade por aí não está escrito. Ou melhor, tocado. Se eu fosse um empresário com capital suficiente, investiria em um veículo que só divulgaria o chamado mercado alternativo. Conquistaria uma fatia poderosa do mercado, educaria, faria história e ainda ganharia muito dinheiro. Quem sabe alguém não se disponha a isso e saiamos, finalmente, desse vácuo artístico fictício. Tudo o que temos de melhor está meio por trás da cortina. Basta abri-la para encontrar preciosidades incalculáveis. Exagero? Alguém aposte pra ver.
13) RM: Vocês acreditam na influência da obra e criação de Jackson para gerações futuras de forma antropofágica? Ou existe apenas um uso conceitual para credibilizar novos trabalhos e artistas? Quais seriam, de fato, os filhos musicais de Jackson, reservando as devidas evoluções musicais e estéticas?
Fernando Moura: Olha, essa é uma questão complexa para tentarmos dissecar em uma rápida conversa. Principalmente em se tratando de uma obra tão diversificada quanto a de Jackson. Na verdade, não acredito muito nesse conceito de “herança musical”. Cada artista carrega consigo uma carga própria de talento, lapidado a partir de determinadas influências, que podem ser perenes ou esporádicas. Prefiro investir na linha, digamos, pedagógica, onde escolas imaginárias são fundadas para preservar aspectos artísticos específicos. Sem, necessariamente, ninguém copiando ninguém, mas trilhando um caminho, uma rota. Na escola jacksoniana, assim como na escola gonzaguiana ou na escola joãogilbertiana – ou em qualquer outra das incontáveis existentes no Brasil – vamos encontrar alunos aplicados e personalíssimos, que vão incorporando elementos e temperos próprios. É um processo evolutivo quase diário. Você pega, por exemplo, Biliu de Campina, Parrá e Zé da Ema, na Paraíba, e vai chegar à conclusão óbvia que não são clones, nem cover’s, nem desejam imitar Jackson do Pandeiro. Mas assimilaram o formato adotado pelo velho mestre na condução de seus cantos, dividindo, costurando, remoendo, encurtando e esticando a palavra cantada para causar um efeito mágico no ouvinte. Eles são herdeiros? Acho que são discípulos aplicados. Em Pernambuco, ainda como exemplo, você encontra um fenômeno na divisão do canto, assumida e reverencialmente fã de Jackson, o Silvério Pessoa, mas que tem uma luz tão especial, tão dele, que ninguém em sã consciência poderia carimbá-lo como “herdeiro” no sentido restritivo da palavra. Ele é mais um agente emissor dos ensinamentos básicos do rei do ritmo, acrescido das suas próprias experiências. Jackson não deixou herdeiros. Seu legado é um conceito amplo de brasilidade.
14) RM: Até que ponto o anti-estrangeirismo musical pregado por Jackson tem motivos concretos para existir como resguardo de nossa memória musical nacional?
Fernando Moura: Até pareceria contraditório esse posicionamento de Jackson se lembrarmos que sua trajetória reuniu elementos da cultura essencialmente popular – como o coco de Flora Mourão – com o jazz, o blue, as big bands, os clássicos e toda a instrumentalização “estrangeira” que absorveu em sua formação, entre Campina Grande, João Pessoa e Recife. Ele próprio foi um universalista, sem qualquer tendência xenófoba. Sua indignação deu-se em uma fase em que a música estrangeira, com coisas boas e barbaridades, estava consumindo os espaços conquistados com muita luta pela música regional nordestina. O chamado “mercado” não soube dosar essa diversificação, engolindo os profissionais brasileiros com tal selvageria, que a reação de Jackson e de muitos outros não poderia ser diferente. Essa batalha fez, inclusive, com que deixassem de compreender fenômenos como os Beatles e os Roling Stones.
15) RM: Como vocês definiriam Jackson musicalmente?
Fernando Moura: Vou dar uma “esnobada” e reproduzir uma frase de um dos depoimentos do livro, João Gilberto: “Excepcional e originalíssimo”. Falta, apenas, entendermos isso de forma mais ampla e permanente. O brasileiro de hoje desconhece o legado de Jackson. Lá fora isso já vem ocorrendo um tênue reconhecimento. Na França, por exemplo, foi lançado em março um luxuoso catálogo resumindo a história musical brasileira, em comemoração ao ano do Brasil num dos principais celeiros culturais do planeta. Nessa edição, fotos e informações pinçadas – e devidamente registradas – da biografia que lançamos o (re) coloca, ao lado de nossos principais ícones sonoros, como um dos nossos mais sólidos pilares. Mas temos ainda todo o século XXI para referendar isso.
Contatos: (83) 3218 – 9790 | 98823 – 2750 [email protected]
Jackson do Pandeiro cantando Sebastiana
Faleceu no dia 08.02.2022 Antônio Vicente Filho em João Pessoa – PB.
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