O Cantor, compositor, produtor musical, militante e educador social paulista Bruno – Buia Kalunga começou na música ainda na adolescência e aprendeu as primeiras notas no violão com seu pai, Heider Alves. Estudou percussão popular na Casa da Música de Diadema – SP.
Integrante da banda Ba-Boom como vocalista, compositor e arranjador. Já fez parte também da banda Makomba, que acompanhava o cantor Ba Kimbuta, e dos grupos de RAP Amandla e Uclã. Atua como arte educador, ministrando oficinas de musicalização no projeto “Arte na Casa”, que leva arte e cultura para os adolescentes em privação de liberdade dentro da Fundação Casa, através da ONG Ação Educativa. Ex militante do grupo anarquista “Ativismo ABC”, atualmente milita no movimento negro com o grupo Kilombagem.
Em seu trabalho solo, tem alguns singles lançados na internet e um videoclipe da música “A Cena”. Está em fase de produção do novo trabalho “solo” com DJ Crick no Studio Kasa.
Segue entrevista exclusiva com Bruno – Buia Kalunga para a www.ritmomelodia.mus.br , entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 10.10.2016:
01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal?
Bruno – Buia Kalunga: Eu nasci no dia 26.08.1982 em São Bernardo do Campo – SP.
02) RM: Como foi o seu primeiro contato com a música.
Bruno – Buia Kalunga: Não me lembro. A música está presente em nossas vidas mesmo antes de nascermos, desde que estamos na barriga da nossa mãe. Nosso primeiro contato com a música é remoto e foge da memória. Mas comecei a me interessar pela prática musical com meu pai, Heider Alves, que me ensinou os primeiros acordes no Violão. O pai dele, Olival, também era músico. Ambos alagoanos.
03) RM: Qual a sua formação musical e acadêmica fora música?
Bruno – Buia Kalunga: Eu me formei em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo e em percussão popular na Casa da Música de Diadema. Não sou advogado e não cheguei a exercer a profissão. Enquanto cursava a faculdade comecei a trabalhar com música e educação social, e desde então decidi me dedicar a essa área.
04) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente? Quais deixaram de ter importância?
Bruno – Buia Kalunga: São tantas… Incontáveis. Somos influenciados o tempo todo pelo ambiente ao nosso redor. Inclusive por coisas que não gostamos. Moro numa quebrada onde som alto é frequente, por exemplo, e nem sempre é do meu gosto, mas tá lá, tocando, e quem tá em volta absorve aquilo, em maior ou menor proporção. No passado fui muito influenciado pela cultura punk e pela sua musicalidade. Também pelo Ska, Reggae, RAP, e mais tarde pela música brasileira, pela cultura popular. Acho que tudo isso ainda vive em mim, sinto presentes essas influências no que faço. Atualmente trabalho com Reggae e RAP. Escuto Sizzla, Capleton, Damian Marley, Tippa Irie, Barington Levy, Morgan Heritage, Seeed, Groundation, Steel Pulse, Dezarie. De RAP, os que eu tenho ouvido são: Amiri, Inquérito, Emicida, Rocha, Tifu, o disco novo dos Racionais MC’s. Tenho escutado também Milton Nascimento, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Monarco, Candeia. Esses sambas, eu escuto sempre. Descobri recentemente também o Blitz, The Ambasador, tô gostando.
05) RM: Quando, como e onde você começou a sua carreira musical?
Bruno – Buia Kalunga: Comecei a tocar e fazer shows por volta de 1998, com a banda de hardcore “Sopa de Prego”, que não existe mais, e depois com a banda Ba-Boom em 2002, que está na ativa ainda hoje. Comecei a trabalhar como arte-educador em projetos sociais em meados de 2008. Em 2011 lançamos o primeiro trabalho “profissional” com a banda Ba-Boom, o single “Amizade Prevalece”.
06) RM: Quantos discos lançados e quais os anos de lançamento(quais os músicos que participaram das gravações)? Qual o perfil musical de cada álbum? E quais as músicas que caíram no gosto do seu público?
Bruno – Buia Kalunga: Em 2012 lançamos com a Ba-Boom o disco “Incendeia”, produzido por Sérgio Sofiatti. Conta com participações de André Abujamra, Denna Hill e Ana Guimarães. É um álbum de reggae bem “pra frente”, com Ragga, Ska, DUB e muita percussão brasileira. Esse disco teve turnê de lançamento na Jamaica, no Ocho Rios Jazz festival. O documentário sobre a turnê se encontra disponível no YouTube.
Em 2015 lançamos o “SomosUm”, um álbum que conta com participações especiais em todas as faixas: Arcanjo Ras, Jimmy Luv, Rappin Hood, Denise D’ Paula (ex Filosofia Reggae), Ba Kimbuta, Samanta Santos, Ana Guimarães, Arnaldo Tifu & Dj Spaiq. Esse é um disco ainda mais eclético, com afrobeat, rap, samba… mas o reggae e a música jamaicana ainda são o fundamento do trabalho. Muitas músicas desses álbuns “caíram no gosto” do público e, como existe uma diversidade grande entre elas, que vai do afoxé até o dancehall, fica difícil definir as “mais”. Mas posso citar algumas bem marcantes: “Amizade Prevalece” e “Boto Fé”, uma de cada álbum. Além dessas, lancei alguns singles como artista solo: “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” com a Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, “A Cena” com Ba Kimbuta, “Enquanto” com a equipe Rasta Conection do Ceará, e “Leão de Judá”, o mais recente. Destaque vai para “A Cena”, que virou clipe, disponível no YouTube.
07) RM: Como você define seu estilo musical dentro da cena reggae?
Bruno – Buia Kalunga: Sinceramente não sei, acho difícil enquadrar em um estilo só, costumo variar bastante. Mas costumam me dizer que minha pegada é mais pro ragga/dancehall. É um estilo que gosto, mas não me resume. Tenho mais que isso.
08) RM: Como você se define como cantor/intérprete?
Bruno – Buia Kalunga: Vixi… Se a pergunta anterior era difícil, essa aqui então (risos). Eu não gosto de me definir. Deixo essa resposta para quem me escuta, quem me acompanha.
09) RM: Quais os cantores e cantoras que você admira?
Bruno – Buia Kalunga: Além dos que já citei anteriormente, Fela Kuti, Bob Marley, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil, Nina Simone, Fanta Konate, Lauryn Hill, Dezarie, Ba Kimbuta, Chico Science, Salloma Salomão, Monkey Jhayam, Laylah, Criolo, Emicida, Black Alien, Marechal, Chico César, Milton Nascimento, Riachão, Lineker, Tom Zé, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Margareth Menezes, Edson Gomes, Ras Bernardo, Toots Hilbert, Buju Banton, Myrna Hague, Mano Brown, GOG, Lineker, Felipe Boladão, Mano Teko, Pingo do Rap, Nneka, Badu, entre outras e outros.
10) RM: Quem são seus parceiros em composições musicais?
Bruno – Buia Kalunga: Normalmente componho sozinho, mas meu maior parceiro tem sido Ba Kimbuta. Tem também o Robson Dio e a Laylah Arruda.
11) RM: Quais os prós e contras de desenvolver uma carreira musical de forma independente?
Bruno – Buia Kalunga: Essa palavra “independente” precisa ser contextualizada. Independente em relação a que? Somos todos dependentes uns dos outros, ninguém faz um projeto musical virar sozinho. Mas imagino que a pergunta se refira à independência com relação a empresários. Nesse sentido, acho que uma das coisas boas de ser “independente” é ter a liberdade de criar e lançar o que você bem entender, da maneira que quiser. Ser espontâneo e verdadeiro ao invés de corresponder às expectativas de terceiros, que muitas vezes enxergam no seu trabalho apenas mais uma mercadoria. Se for mercadoria, tem que vender, e pra vender tem que preencher certos requisitos, segundo eles. Isso pode ser muito bom pra quem pensa na grana em primeiro lugar, porque empresário faz o bagulho virar, tem o cash, conhece o caminho. Mas para quem pensa em fazer arte mesmo, em passar uma mensagem, em forma aliada a conteúdo, pode ser um tiro no pé. Minha arte não é só estética, não é só para entreter. A música faz um sentido maior para mim, é visceral, é quem eu sou, é contradição, é treta, é dor e alegria, é crise, é crítica, é amor e ódio. Faço música de forma sincera comigo mesmo, e consequentemente com o público. Se for só pela grana eu faço também às vezes, preciso inclusive, mas aí é trampo, é frio. O quente é outra pegada. Quero ganhar dinheiro com isso sim, quero muito dinheiro, demorou, “vem ni mim”, mas quero continuar sendo quem eu sou. Não abro mão disso, e pago o preço. Não é fácil viver de música no Brasil. Sendo independente então… Sendo pobre e independente então… (risos). Raramente temos um dinheiro para investir, e isso faz uma grande diferença. Não ter quem banque, não ter mesada, nem “paitrocínio”, segurando várias responsas em casa, no trabalho, na vida. Sem fazer drama de coitado, nem desmerecendo quem tem uma boa condição financeira.
Tenho consciência de que sou sujeito da minha história também, tive inclusive oportunidades que muitos não tiveram e escolhi seguir esse caminho, escolhi enfrentar essas dificuldades, sabendo delas. Mas é uma situação real. No Brasil, infelizmente, o sucesso não depende só do talento e do esforço (como reza a lenda da meritocracia), depende também de quanto você pode pagar para ter seu trabalho reconhecido. Da sua posição social, do seu poder de influência nesse jogo de interesses. O jogo é sujo. Estamos no país do jabá, do lobby, do mensalão, da Lava-jato, maracutaia em vários níveis, da porra toda. É Babilônia. Se a sociedade é assim, no mundo da música não poderia ser diferente. Cabe a nós entender cada vez melhor essa dinâmica. Jogar o jogo quando for preciso, mas também buscar alternativas. Fortalecer entre nós, criar cada vez mais autonomia, movimentar a parada. Não sucumbir.
12) RM: Quais as ações empreendedoras que você pratica para desenvolver sua carreira?
Bruno – Buia Kalunga: Divulgação é fundamental, nas redes sociais, na rua, nos espaços. Procuro sempre postar novidades e manter os canais de comunicação com o público que tenho em atividade. Quando posso, eu invisto uma grana em publicações virtuais, em publicidade. Além disso, é importante colar nos espaços, fazer novos contatos… Manter-se ativo, sendo visto. “Quem não é visto não é lembrado”.
13) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento da sua carreira?
Bruno – Buia Kalunga: Ajuda na facilidade da comunicação, na possibilidade de disponibilizar os trampos e compartilhar com bastante gente. Dificulta no sentido de que o volume de informações circulando é muito grande, então parece que tudo se torna muito efêmero e se perde em meio a tanta coisa rolando. O tempo voa, você lança uma música hoje, uns 15 dias, ela já cai no esquecimento.
14) RM: Como você analisa o cenário reggae brasileiro? Em sua opinião quem foram às revelações musicais nas duas últimas décadas e quem permaneceu com obras consistentes e quem regrediu?
Bruno – Buia Kalunga: Acho que é um cenário ainda em formação. Muita coisa vem mudando de uns anos pra cá. Há uns 15 anos atrás, o reggae era praticamente só com bandas (exceto no Maranhão, que é um caso a parte), e a sonoridade delas era muito parecida, bem na pegada do reggae latino. Hoje o público vem se qualificando aos poucos, descobrindo outras vertentes do reggae como o dub, o stepper, o dancehall, o ska. A cultura sound system vem se alastrando, principalmente em São Paulo. Houve muitas revelações no cenário e é difícil destacar, mas posso escolher duas: a OBMJ – Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, e o cantor Monkey Jhayam. Sobre bandas que permanecem “consistentes”, cito duas também: Leões de Israel e Natiruts. Duas bem diferentes entre si, mas que considero importantes pro cenário e que consolidaram um público, uma caminhada, um legado. Não sei se nós podemos falar que X ou Y “regrediram” na música. Não creio que exista uma linha gradativa na carreira musical, não tem como mensurar algumas coisas. Tem gente que não tá fazendo show direto, mas tá produzindo, tá “trampando”. Tem gente que tá fazendo música de outras formas. Cada um tem seu tempo e o progresso pra cada um vem de uma forma diferente, de acordo com as condições que tem, com as possibilidades, com muitas outras variáveis.
15) RM: Quais as vantagens e desvantagens do acesso a tecnologia de gravação (Home Studio)?
Bruno – Buia Kalunga: É bom poder concretizar as produções sem depender de terceiros, sem gastar grana com isso. Sempre que a tecnologia se democratiza, acredito que temos um avanço. O desafio é saber mexer com essas ferramentas e não prejudicar a qualidade do trabalho. Um estúdio profissional com maior estrutura sem dúvida resultará num trabalho melhor. Não sou dono de estúdio e não sei dizer se essa democratização dos meios de produção dificultou o trabalho deles. Só posso dizer que, como produtor e cantor, eu acho ótima a ideia do “faça você mesmo”. Tenho aprendido cada vez mais sobre como usar as ferramentas e acho que isso é uma tendência geral.
16) RM: Quais os músicos já conhecidos do público que você tem como exemplo de profissionalismo e qualidade artística?
Bruno – Buia Kalunga: Sérgio Sofiatti, Victor Rice, Edu Satajah, Gerson da Conceição. São alguns.
17) RM: Quais as situações mais inusitadas aconteceram na sua carreira musical (falta de condição técnica para show, brigas, gafes, show em ambiente ou público tosco, cantar e não receber, ser cantado e etc)?
Bruno – Buia Kalunga: Acho que tudo isso que você citou já aconteceu e algumas coisas acontecem ainda hoje. São muitas histórias, prefiro nem citar. Vamos ficando cada vez mais ligeiros né? Gente querendo passar a perna, por exemplo, tem de monte. “Tamo de olho”.
18) RM: O que lhe deixa mais feliz e mais triste na carreira musical?
Bruno – Buia Kalunga: São muitos momentos felizes e tristes, em diferentes proporções. Fico feliz quando percebo que o que canto faz sentido pras pessoas, que toca os corações. Fico feliz quando ganho um dinheiro também. Fico triste quando percebo que não somos vistos ainda como trabalhadores, que fazemos “por amor” e nada mais, que não somos remunerados dignamente, que não somos socialmente reconhecidos como deveríamos.
19) RM: Nos apresente a cena musical da cidade que você mora?
Bruno – Buia Kalunga: Aqui em Santo André – SP tem muita gente boa, especialmente no RAP. Arnaldo Tifu, Stephanie, Armagedon, Antologia, Bino, Cultura Suja. Tem o Cultive Dub, que é um sistema de som da pesada. Tem muita banda boa também: Projeto Nave, Otis Trio, Kubata, Nômade Orquestra.
20) RM: Quais os músicos ou/e bandas que você recomenda ouvir?
Bruno – Buia Kalunga: Além dos citados anteriormente, tem um que acho da pesada: Orquestra Rumpilezz.
21) RM: Quais os cantores e cantoras que gravaram as suas canções?
Bruno – Buia Kalunga: Que eu saiba, nenhum.
22) RM: Você acredita que sem o pagamento do jabá suas músicas tocarão nas rádios?
Bruno – Buia Kalunga: Nessas rádios grandes provavelmente não. Já tocou algumas vezes, mas é exceção, e a exceção só confirma a regra: pra tocar tem que pagar. Todo mundo sabe disso. Há quem defenda essa prática de cobrar pra tocar a música na rádio. Eu acho desleal, tanto com a arte quanto com o público. Entendo que temos o direito de saber se o que estamos ouvindo foi selecionado espontaneamente, segundo a proposta do programa, ou se tá ali porque pagaram pra tocar. A partir do momento em que se toca algo mediante pagamento, vira publicidade. Seria mais honesto dizer, nesse caso: “vamos agora aos nossos comerciais”. Só que não funciona assim, esse nível de honestidade “pegaria mal”, não daria dinheiro, então não interessa pra eles. Os programas são encenados, parece que tudo aquilo ali é pela música mesmo, mas sabemos que é pela grana, e não deveria ser assim. Rádio é concessão do governo e presta um serviço público à população, portanto não pode cobrar pelo serviço. Mas essa é assim que funciona e todo mundo tá cansado de saber. O que deveria ser gratuito acaba sendo pago e a qualidade deixa de ser prioridade pra dar lugar à melhor oferta financeira. Capitalismo. Quem pode quem pode mai$ chora menos.
23) RM: O que você diz para alguém que quer trilhar uma carreira musical?
Bruno – Buia Kalunga: Invista em você. Busque um sentido pro que você está fazendo. Busque o tesão em fazer música, porque é assim que saem as melhores produções. Invista na sua técnica, na sua imagem, na sua organização pessoal. Invista em você como ser humano, no seu conteúdo, amadureça sua visão de mundo. A sua visão sobre o que é arte, qual o papel dela na sociedade e, sobretudo, na sua vida. Pense na mensagem que quer passar. Onde você quer que sua música chegue, onde quer chegar com sua música. Entenda onde está pisando, quem veio antes de você, qual é o legado que deixaram pra que você pudesse hoje fazer o que faz. Seja sempre sincero com você e com seu público. Disposição. Luz!
24) RM: Como você analisa a relação que se faz do reggae com o uso da maconha?
Bruno – Buia Kalunga: Acho inevitável fazer essa relação, já que muitos que gostam de reggae fumam, que os rastafaris fumam, que muitas músicas falam disso. Mas acho uma relação perigosa também, primeiro porque é um clichê, não precisa fumar pra gostar de reggae. Segundo por causa do contexto social em que vivemos. Fumar maconha ainda é ilegal, é sinônimo de marginalidade, embora seja “cool” em determinados espaços. Fumar nas festas universitárias é uma coisa, fumar na quebrada é outra. Ainda se associa o uso da erva a bandidagem, a “vagabundagem”, a violência, e isso tem uma raiz histórica. A proibição não tem nada a ver com uma preocupação do governo com a saúde das pessoas, tem a ver com interesses políticos, econômicos e, também, com o racismo. Quem usava ganja nos EUA quando começou a proibição eram os negros e latinos. Criminalizar era a desculpa perfeita pra oprimir ainda mais essas pessoas e reforçar a ideia de que eram pessoas perigosas, violentas, com hábitos condenáveis e que precisavam ficar presas e longe do “cidadão de bem”. O reggae é música negra, também sofreu racismo e ainda há resquícios dessa opressão. A maconha se torna um agravante a mais nesse contexto. Se o reggae por si só já é coisa de “vagabundo” e “marginal”, mesmo sem ganja, imagine com ela. Criou-se um estereótipo do regueiro que passa pela ideia do “louco”, do “maluco”, e isso é muito perigoso. Será que somos loucos mesmo? Se formos, quem é “são”? Vivemos num mundo “são”? Bob Marley era “louco”? Pra mim ele era bem lúcido. Eu levo a sério o que ele falava, e acho que assumir essa ideia da “loucura” é dar margem para que nossas palavras sejam desmerecidas. Muito fã de reggae assume isso pra si como algo positivo, como contraponto aos “caretas”. Reconheço que pode ser legal por um lado, porque é um tapa na cara desse “mimimi” conservador burguês careta e cheio de recalque. Mas me incomoda essa aceitação de ser chamado pelos termos que a burguesia preconceituosa escolheu para nós. A palavra tem poder. Temos que nos valorizar e valorizar nossa cultura. Buscar fundamento, entender o sentido de cada coisa. A erva não é só pra ficar “louco”, “chapado”, “doidão” no rolê. Há outras dimensões do uso da planta. É uma prática ancestral inclusive, que envolve mais do que a simples “chapação”.
25) RM: Como você analisa a relação que se faz do reggae com a religião Rastafari?
Bruno – Buia Kalunga: Inevitável também, já que o reggae é a música escolhida pelos rastafaris. Acho que o Rastafari deu uma dimensão maior para o reggae, um sentido maior do que havia antes. Gosto da ideia. Só não vale confundir as bolas: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
26) RM: Você usa os cabelos dreadlock. Você é adepto a religião Rastafari?
Bruno – Buia Kalunga: Dreadlock é muito mais antigo do que Rastafari. É um jeito africano de usar o cabelo crespo. É próprio pro meu tipo de cabelo, é uma herança étnica, cultural. Uso mais como uma questão de identidade. Não sou religioso, mas tenho fé ao meu modo. Religião para mim é algo muito sério, muito rígido, exige entrega, disciplina, acatar determinadas regras de conduta, práticas diárias constantes. Eu acho que sou maloca demais para isso (risos). Mas gosto de conhecer religiões, de absorver algumas coisas. Rastafari é uma das preferidas, sem dúvida, mas não é a única. Gosto muito do candomblé também. Alguns definem Rastafari como religião, outros como “filosofia de vida”, outros como “movimento”. Eu sempre me faço essa pergunta e a resposta costuma variar. Não sei se há uma única resposta certa, na verdade. Acho que cada um assume pra si de uma forma.
Rastafari me fez “olhar para o leste”, nas palavras de Marcus Garvey. Olhar para a África, reconhecê-la como berço da humanidade e reconhecer toda sua contribuição pra nossa história. Reconhecer-me enquanto descendente, entender que isso é importante pra minha autoestima. Não ter vergonha do meu cabelo. Saber que Jesus Cristo era um homem negro de cabelo crespo. Saber que Haile Selassie I, embora fosse um imperador e eu não seja muito simpático a essa ideia, foi um grande líder e teve papel fundamental na luta pela libertação da África e dos descendentes de africanos na diáspora. Isso tudo Rastafari me possibilitou, com mensagens de luta, de consciência, de amor. Blessed love.
27) RM: Os adeptos a religião Rastafari afirmam que só eles fazem o reggae verdadeiro. Como você analisa essa afirmação?
Bruno – Buia Kalunga: Nunca ouvi um rastafari dizer isso. Mas me parece incoerente. Quando o reggae começou, que eu saiba, não tinha nenhuma ligação direta com Rastafari. O early reggae não era Rastafari. Essa ligação foi posterior ao surgimento do reggae.
28) RM: Na sua opinião quais os motivos para o reggae no Brasil não ter o mesmo prestigio que tem na Europa, nos EUA e no exterior em geral?
Bruno – Buia Kalunga: Não tem o mesmo apoio institucional, nem do Estado nem do capital privado. Na Europa a grana chega para cultura, o poder público dá atenção de fato, os empresários investem. Aqui é muito diferente, parece que cultura aqui é “luxo”. Pior: parece que reggae não é cultura. Acho que tem uma “elite cultural” no Brasil que não gosta muito de reggae. Ultimamente até o RAP, que sempre foi marginalizado, tem ganhado mais espaço que o reggae. Não sei, esses são alguns pontos, mas acho que tem muitos outros fatores envolvidos. A cena aqui não teve tanto peso, não tem tanta bagagem quanto tem o RAP, por exemplo. O reggae aqui, com algumas exceções (como Maranhão), não chegou em peso na periferia, não dialogou muito com os movimentos sociais, com o movimento negro, não teve muita representatividade política, nunca teve um movimento organizado em peso. Isso vem mudando aos poucos, vejo que tem cada vez mais sound systems pelas quebradas de São Paulo, tem uma galera se organizando também, mas ainda é pouco.
29) RM: Quais os prós e contras de usar o Riddim como base instrumental?
Bruno – Buia Kalunga: É uma herança cultural da música jamaicana, acho que tem que ser preservada. Gosto da ideia de várias pessoas usando a mesma base instrumental, pois, inverte essa lógica de “exclusividade”. É legal ver diferentes cantoras e cantores criando em cima de um mesmo riddim. Parece que coloca todo mundo em pé de igualdade, e a partir daí cada um dá sua cara, sua personalidade. Eu gosto.
30) RM: Você faz a sua letra em cima de um Riddim já conhecido usando uma linha melódica diferente?
Bruno – Buia Kalunga: Sim, já fiz algumas. Um exemplo é Bam Bam, que fiz com a banda Ba-Boom.
31) RM: Você acrescenta e exclui arranjos de um Riddim já conhecido?
Bruno – Buia Kalunga: Já fiz também. O riddim que citei acima é um exemplo.
32) RM: Quais os prós e contras de fazer show usando o formato Sound System (base instrumental sem voz)?
Bruno – Buia Kalunga: Fazer com banda é mais orgânico, tem mais flexibilidade na hora de executar, tem mais interação entre os músicos. Com sound system é menos, mas um bom Seletor (DJ) interage com o cantor também, entra na vibe. É bom porque exige menos aparelhagem do que uma banda, mais prático. E é um jeito de fazer reggae que se tornou cultural também. É herança jamaicana, é a cultura do reggae na rua, é chegar, montar e som na caixa por horas a fio.
33) RM: Nos apresente seu trabalho paralelo com a banda Ba-boom?
Bruno – Buia Kalunga: A banda Ba-boom começou em 2000 e tem dois discos lançados: “Incendeia” de 2012, e “SomosUm”, de 2015. O “Incendeia”, como eu disse anteriormente, foi produzido pelo Sérgio Sofiatti e lançado em turnê na Jamaica. Costumamos dizer que fazemos “música jamaicana brasileira”, porque passamos por várias vertentes como o ragga, o ska, o dub, e colocamos elementos percussivos brasileiros também, como berimbau, pandeiro, timbau, cuíca. Além de flertar também com outros ritmos, como o rap, o jazz, o afrobeat, o afoxé, maracatu, a capoeira, o samba.
34) RM: Quais os prós e contras da sua atuação como Arte Educador na Fundação Casa?
Bruno – Buia Kalunga: Os contras são muitos, são os que todo educador passa no Brasil, com o agravante de ser uma situação ainda mais difícil, já que a atuação é dentro de um regime fechado. Há muitas regras a serem seguidas, algumas até “justas”, outras não. A censura e violação de direitos são comuns nesses espaços, o ambiente é hostil e às vezes é muito difícil quebrar essas barreiras. Além disso, a falta de estrutura é enorme, o salário é baixo, o Estado nos negligencia a todo o momento. O trabalho fica muito prejudicado por essas questões todas. Muito preconceito contra os meninos também, muito ódio, ou seja, estamos remando contra a maré, de verdade.
Eu procuro ter uma postura firme e sempre lidar com todos de uma forma respeitosa, tanto com os funcionários quanto com os adolescentes. Para quem tá trancado é muito ódio que se acumula. Se eu não entender isso, não consigo trabalhar. É preciso, antes de tudo, ouvir o que eles têm a dizer. Esses meninos são novos, mas já têm uma experiência de vida grande e podemos aprender com eles. Ninguém os ouve, a sociedade em geral os odeia, são os “vagabundos”. Querem que eles estejam lá mesmo, trancados, ou mortos pela polícia, com a cara num desses programas sensacionalistas pra entreter o “cidadão de bem” no sofá da sala e encher o bolso do dono da mídia de dinheiro.
Acho que nossa missão enquanto arte educador em uma situação como essa é, através da música, no meu caso, mostrar toda essa dimensão social do problema pros adolescentes, para que eles entendam que não estão ali só porque cometeram um delito, que essa situação é maior, vem de longe, foi montada desde a escravidão. Cadeia sempre foi pra preto, foi assim que ela nasceu e assim que é ainda hoje. A maioria da população carcerária é preta, e não é por acaso. Desde o “pós-abolição” inclusive, o negro ganhou a tal “liberdade”, mas o que sobrou de fato pra ele foi só a droga, o crime, a violência.
O Estado e as elites planejaram essa situação aqui e em diversas partes do planeta. O reggae traz essa visão, Marcus Garvey observou que a situação do povo preto era semelhante na diáspora. Acredito que a música negra, a música do gueto, tem o poder de levantar a autoestima desses adolescentes e mostrar que há outro caminho possível. Que existem pessoas como eles que são grandes líderes, que fazem ou fizeram história e que superaram as dificuldades. Nelson Mandela, Malcolm X, Steve Biko, Luther King. Todos esses foram presos, têm origem semelhante, passaram por dificuldades semelhantes e conseguiram grandes feitos.
35) RM: Quais os seus projetos futuros?
Bruno – Buia Kalunga: Estou produzindo um disco de rap e ragga com o DJ Crick que logo estará na rua, e esporadicamente solto alguns singles na internet. Além disso, estou produzindo também com Dj Crick o EP do Ba Kimbuta. E divulgar o single “O Bom Soldado” que teve a participação da cantora Denise D’Paula, e que lancei dia 7 de Abril de 2016.
36) RM: Quais os seus contatos para show e para os fãs?
Bruno – Buia Kalunga: [email protected] | www.facebook.com/bruno.buian