Leonardo Vidigal leciona Estudos de Cinema e Estudos de Música Popular no Programa de Pós-Graduação em Artes e no curso de Cinema de Animação e Artes Digitais da Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.
Em 1991, começou a sua trajetória como DJ, adotando o nome de Leo Vidigal ou Nardo Leo. Sempre nas horas vagas de seu emprego na universidade, tocou com os coletivos Radiola Sound System, Deskareggae Sound System, UAI Sound System, Roodboss e BH Train (Belo Horizonte), Digitaldubs (Rio de Janeiro), High Vibes (São Luís), Confronto Sound System (Brasília), 55 Sound System (Nápoles) e Irie Action (Atenas), além dos eventos Dub Me Always e Deptford Dub Club (Londres), Indubitável, Big Up, Reggae on Broaday (Belo Horizonte) e nas casas noturnas Broaday, A Obra Bar Dançante, Ototoi, Café com Letras, Cannibals (Belo Horizonte), entre muitos outros.
Publicou o capítulo “Reggae Documentáries in Brazil” no livro Global Reggae, editado por Carolyn Cooper para o selo Canoe, University of West Indies Press. Leo também publicou vários artigos sobre reggae, filmes de reggae, sound systems e som e música no cinema em periódicos como Volume!, Interactions, Music Research Annual, Significação, Pós, Contemporânea e Revista Brasileira do Caribe.
Também faz parte do grupo de pesquisa Sound System Outernational e do projeto de pesquisa Sonic Street Technologies, coordenado por Julian Henriques na Goldsmiths, University of London. Integra também o projeto de Pesquisa “Batendo os Tambores Eletrônicos: Sound Systems de Reggae nas Ruas de São Luís, Kingston e Londres”.
Segue abaixo entrevista exclusiva com Leo Vidigal para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 20.12.2024:
01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal?
Leo Vidigal: Nasci no dia 11 de fevereiro de 1967 no Rio de Janeiro. Registrado como Leonardo Alvares Vidigal.
02) RM: Fale do seu primeiro contato com a música.
Leo Vidigal: Difícil dizer, mas foi provavelmente a coleção de discos de meus pais (João Fortunato Vidigal e Thereza Aurelia Alvares Vidigal), principalmente minha mãe. Tinha muita MPB, samba, jazz, cultura popular brasileira, alguma coisa de rock, como Beatles, e música de concerto. Lembro que minha mãe me levava a festas dos amigos onde rolava muito samba e música latino-americana e isso me educou para respeitar e pesquisar a música popular.
03) RM: Qual sua formação musical e/ou acadêmica fora da área musical?
Leo Vidigal: Tive uma formação musical básica em uma ótima escola, que comecei alguns anos depois que minha mãe voltou para Belo Horizonte – BH, quando tinha dez anos. Essa escola, a Fundação Educação Artística, continua formando músicos na minha cidade, mas acabei não seguindo essa carreira. Hoje toco percussão como amador e sou DJ.
Sou formado em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV pela USP. Pouco depois que me formei, esta habilitação se fundiu com a de Cinema e gerou o curso de audiovisual. Talvez porque muitos alunos, incluindo a mim, frequentavam muito as aulas de cinema.
Depois fiz mestrado e doutorado em Comunicação Social pela UFMG, já direcionando minha pesquisa para o reggae e o cinema. Hoje sou professor de cinema na Escola de Belas Artes da UFMG e minha especialidade é o som no cinema, música popular no cinema, campo profissional e montagem, além de dar aulas e orientar alunos de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes da mesma universidade.
Também atuo fazendo pesquisa acadêmica sobre sound systems, sou um dos fundadores do grupo de pesquisa Sound System Outernational, que congrega pesquisadores de todo o mundo e é coordenado pelo professor jamaicano, radicado na Inglaterra, Julian Henriques.
Ele também coordena o projeto Sonic Street Technologies (https://sonic-street-technologies.com), no qual também participo, no site do projeto há textos em inglês, espanhol e português sobre vários aspectos do reggae e de sound systems que trabalham com outros gêneros musicais, como os sonideros no México (salsa, cumbia) e os picos na Colômbia (afrobeat, afropop, música latina), entre outros.
Em 2015 desenvolvi uma pesquisa sobre sound systems que me trouxe para a Inglaterra, onde morei por um ano e realizei em 2016 com Delmar Mavignier o filme-pesquisa “Minha Boca, Minha Arma – Palavra, Som e Poder”, que pode ser acessado no Vimeo.
Voltei em 2024 com uma bolsa do CNPq para continuar essa pesquisa, analisando as similaridades e diferenças entre as cenas do Maranhão, Jamaica e Reino Unido, além de pesquisar sobre o acervo audiovisual dos sound systems e documentários sobre sound systems.
Precisamos nos descobrir, descobrir mais sobre o que nos une, temos muito mais motivos para nos unir do que para nos desunir, por isso também faço esta pesquisa. Escrevi vários artigos sobre reggae, sound systems, filmes de reggae e som no cinema, para quem quiser ler, basta acessar os links para os meus artigos em https://encurtador.com.br/te0SO.
04) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente. Quais deixaram de ter importância?
Leo Vidigal: Partindo da coleção de discos de minha mãe e do que ouvia no rádio, sempre gostei de samba, jazz e rock. Havia um ou outro reggae de artistas como Gilberto Gil, João Evangelista e outros que já escutava sem saber direito do que se tratava.
Na adolescência comecei a formar a minha coleção de discos, incluindo Bob Marley e outros artistas de reggae. Meu amigo Dalton Fantini me enviava fitas cassete de programas de rádio do Rio, como o Batmacumba da Fluminense FM, do Nelson Meirelles, e o Novas Tendências.
Na época houve também uma intensa troca de fitas cassete gravadas dos discos, algo pouco mencionado na formação de público e de DJs daquela época. Por exemplo, dois cassetes gravados de álbuns que me chegaram bem antes dos discos de vinil foram “Night Nurse” de Gregory Isaacs, e “Blackboard Jungle”, de Lee Perry e The Upsetters.
Quando me mudei para São Paulo para fazer a graduação de radialismo, passei a ouvir regularmente programas de rádio de lá, como Disco Reggae, produzido por Otavio Rodrigues e Reggae Raiz, produzido por Jai Mahal e China Kane. Isso ampliou o meu horizonte no universo de reggae e me fez adotar este gênero como o meu favorito em definitivo.
Sobre influências que deixaram de ter a mesma importância em minha vida, devo dizer que na época em que estudei música ouvia bastante música de concerto e música contemporânea e eletroacústica, principalmente em apresentações ao vivo, mas continuo indo a apresentações de música contemporânea hoje em dia.
05) RM: Quando, como e onde você começou sua carreira de DJ?
Leo Vidigal: Quando voltei a Belo Horizonte – MG, em 1989, comecei a montar uma coleção de discos em parceria com meu amigo Mauro França.
Em 1991, fundamos o Fã-clube Massive Reggae, com outros amigos (Mauro França, Lino Rodrigues, Márcia Rodrigues, Marcelo Crocco, Fred Arreguy, Cláudio Rocha e eu, entre outras pessoas) e produzíamos o fanzine Massive Reggae, com a maior parte do texto meu e design de Laura Guimarães, que teve sete edições, depois migrou para a web e hoje está hibernando e fundamos a Radiola Sound System, junto com os amigos Marcelo, Cláudio e Lino, que durou até a abertura por eles da Obra Bar Dançante em 1997, casa noturna que herdou os equipamentos do sound system. Até hoje é a ponta de lança da cena underground em Belo Horizonte – MG.
Ainda vou escrever a história da Radiola Sound System, que, até onde sei, foi o primeiro sound system do sudeste, pois era uma equipe de mais ou menos sete pessoas, que naquela época tocava quase somente reggae, tinha seus próprios equipamentos e fazia eventos pela cidade.
A gente era mais inspirado pelas Radiolas do Maranhão, que a gente já conhecia por causa de um casal de amigos, Rute e Cássio, que passou alguns dias em São Luís, trazendo muitos relatos e fitas cassete dos programas de rádio de lá, e por reportagens na mídia.
Embora fossem do nosso conhecimento, os sound systems jamaicanos e britânicos eram muito distantes de nós na época, havia muito pouca informação sobre eles em tempos pré-internet. Fizemos nossa primeira festa em 1991, quando comecei a trabalhar como DJ ou a “discotecar”, como se dizia na época, em que o DJ era chamado de “discotecário”.
Tivemos uma noite reggae semanal entre 1992 e 1997, primeiro na Broaday (se escreve assim mesmo), no bairro de Santa Tereza no Rio de Janeiro, depois em outros lugares de Belo Horizonte e esta foi minha profissão principal até passar em 1995 no concurso da Fundação João Pinheiro, uma escola e instituição pública de pesquisa.
Em 2002 fui para a UFMG, o que me fez discotecar apenas nas horas vagas, mas nunca parei. Bem mais tarde, Rafael Rosa e Pedro Varela me convidaram para fazer parte, em 2011, do sound system Deskareggae, a partir do projeto de shows do mesmo nome que o Pedro organizava. Mais tarde entraram no sound o DJ Yuri Leite, Yellow Youth e o MC Lelo Youth, que continuam até hoje.
06) RM: Quais motivos levaram você escolher o repertório de Reggae?
Leo Vidigal: Por muitas razões. Hoje entendo que o reggae combina vários elementos que me atraíram, além do ritmo dançante e da mensagem revolucionária, como o fato de não pertencer ao mainstream da música popular, a rede subterrânea que o sustenta, o carisma dos artistas, as letras poéticas, engajadas e fortemente enraizadas na cultura popular, entre outras razões.
Outra coisa que me atraiu foi a comunhão social com pessoas que pensavam mais ou menos como eu, formando uma cena pacífica, mas atuante politicamente. A descoberta de cenas como a do Maranhão, onde já fui muitas vezes e, mais tarde, a cena de sound systems em São Paulo, e agora minha pesquisa no Reino Unido também foram determinantes para manter acesa a chama do reggae. Acima de tudo, é uma música que me faz bem.
07) RM: Como você escolhe o seu repertório?
Leo Vidigal: Depende um pouco do evento. Às vezes o contexto pede um set mais tranquilo, para as pessoas ouvirem ou conversarem, mas gosto mesmo de fazer com que as pessoas dancem.
O primeiro critério é a música que faz mexer o meu corpo, seja de forma tranquila ou mais intensa, então, toco o que me agrada e acho que vai agradar ao público em um dado contexto.
Alguns DJs já vão para a pista com sequências programadas ou anotadas, mas faço uma escolha de discos mais eclética dentro do reggae, para levar ao lugar onde vou tocar uma possibilidade maior de escolha.
Isso porque tenho discos de praticamente todos os estilos, desde o ska, rocksteady, early reggae, passando pelos roots, rockers, rub-a-dub e dancehall, uma coleção que tem 40 anos, embora não seja tão grande em termos quantitativos.
Começo a tocar e se o público responde bem a um estilo de reggae, contínuo até começar a sentir que não está funcionando mais, se as pessoas param de dançar ou saem da pista, então toco outros estilos, ou às vezes improviso ao lembrar de uma canção legal ou a partir de uma sugestão de alguém do público, mas sempre escolho faixas que favoreçam a dança.
08) RM: Você é colecionador de disco?
Leo Vidigal: Sim. Minha coleção é a base de tudo.
09) RM: Qual a importância do colecionador de disco?
Leo Vidigal: O colecionador acima de tudo ama a música e é um arquivo vivo, ele preserva os discos para as novas gerações. Hoje as pessoas têm muitas opções de escuta musical na ponta dos dedos, mas muitos dos discos que estão nos catálogos dos serviços de streaming foram preservados ou popularizados pelos colecionadores e colecionadoras.
Principalmente os discos que não tiveram uma venda tão boa, na época de lançamento, ou até venderam bem, mas depois foram esquecidos e foram mais tarde resgatados pelos colecionadores, antes da nossa era de interconexão facilitada.
Isso tem a ver com a operação que o colecionador faz, como Walter Benjamin analisou tão bem nas “Passagens”, que seria “libertar” ao menos momentaneamente o item da coleção de sua condição de mercadoria, ressaltando neste objeto a sua característica de ser um difusor de cultura.
Isso faz sobressair os afetos que atravessaram aquela obra, seja de quem a produziu ou de quem a ouve, afetando os ouvintes de diversas maneiras. Para os colecionadores, o valor afetivo, o valor cultural, subjetivo e coletivo, ou valor de uso, para usar um termo da economia, predomina sobre o frio valor de troca, baseado no custo de produção e outros fatores “objetivos”.
Alguns vendedores de discos, principalmente os de lojas menores ou independentes, estão no meio-termo dessa gradação entre comércio e arte, se transformando também em colecionadores.
10) RM: Quais as cantoras (es) que você admira?
Leo Vidigal: São tantas e tantos. Para ficar apenas no reggae admiro bastante Doreen Shaffer, Marcia Griffiths, Rita Marley, Judy Mowatt, Hortense Ellis, Phyllis Dillon, Norma Dean, Dawn Penn, Sister Carol, Nadine Sutherland, Lady G, Ranking Ann, Sister Nancy, Althea & Donna entre as mulheres; Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer, Horace Andy, Dennis Brown, BB Seaton, Junior Braithwaite, Alton Ellis, Ken Boothe, Johnny Osbourne, Johnny Clarke, John Holt, Alpha Blondy, Tiken Jah Fakoly e Gregory Isaacs entre os cantores.
Entre os brasileiros e brasileiras, citaria Gilberto Gil, Celso Moretti, Fauzi Beydoun, Monkey Jhayam, Ualê Figura, Célia Sampaio, Núbia Rodrigues, Marietta, Lei Di Dai, Marina Peralta, Laylah Arruda, Junior Dread, Junior Bocca, mas essa lista poderia ser muito maior. E ainda tem os DJs que fazem o toasting, ou falam por cima das bases instrumentais, como U Roy, I Roy, U Brown, Ranking Joe, entre muitos outros.
11) RM: Apresente seu set up equipamentos.
Leo Vidigal: O meu set up é modesto, um toca-discos Pioneer e um mixer Behringer, que uso mais em casa. Os equipamentos do Deskareggae estão em processo de mudança, então prefiro não falar sobre isso, mas é um sound system tradicional, com pré-amp, amplificadores e caixas de som customizadas, com potência aproximada de 10000 watts.
12) RM: Quais são seus principais equipamentos para começar a função de DJ?
Leo Vidigal: Como toco quase somente vinil, seriam um ou dois toca-discos e mixer, além de adaptador para compactos de 7 polegadas, cabo e adaptador para ligar no amplificador, extensão de energia etc. Também gosto de usar equipamentos analógicos, para efeitos, mas somente quando disponíveis.
13) RM: Quais as diferenças de entre usar um notebook como tocador de mp3 através de um programa como toca discos e os próprios toca discos?
Leo Vidigal: Pode ser porque sou de outra geração, mas prefiro vinil. Existe claramente o aspecto tátil e sensorial, o disco se encaixa nas mãos, você pode visualizar a faixa no disco, na hora de tocar e trocar, a transição de uma faixa para outra é feita de forma manual no mixer, assim como a adição de efeitos.
O disco também tem outras características fora da parte musical que o fazem ter uma aura mais potente, como a capa, o encarte, você encontra nomes, anotações e até declarações de amor de antigos donos e donas do disco no selo, na capa e contracapa.
O prazer de colecionar discos torna o ato de discotecar mais intenso e gratificante, você precisa se esforçar para adquirir uma determinada música, garimpar nas lojas, nas feiras, em diversos lugares. Lojas de disco, ainda hoje relevantes em tempos de compras online, estão entre meus lugares favoritos. Cada disco tem uma história, tanto no nível pessoal, quanto no nível coletivo.
A rede de colecionadores também é outra razão, fiz muitos bons amigos e amigas por conta disso. Posso usar notebook em algumas poucas situações, mas as faixas imateriais e muitas vezes de má qualidade que podemos baixar na Internet não são a mesma coisa, não geram a mesma experiência. Por outro lado, essa forma de tocar democratizou a profissão de DJ, o que tem vantagens e desvantagens. Mas a cultura do vinil está consolidada novamente e não é à toa.
14) RM: Quais os melhores periféricos e indispensáveis para o DJ?
Leo Vidigal: Não uso tanto periféricos, mas no reggae usamos alguns efeitos como bips, sirenes e outros. São efeitos mais simples que podem ser conseguidos com poucos aparelhos.
15) RM: Quais as estratégias de planejamento da sua carreira dentro e fora do palco?
Leo Vidigal: O trabalho de DJ já foi minha profissão principal, mas hoje sou um pesquisador, que faz prática como pesquisa, tocando sempre que possível.
16) RM: Quais as ações empreendedoras que você pratica para desenvolver a sua carreira de DJ?
Leo Vidigal: Na época da pandemia fiz lives e divulguei mais o meu trabalho, mas tudo o que faço hoje é junto com os amigos do Deskareggae.
17) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento de sua carreira de DJ?
Leo Vidigal: Ajuda na divulgação dos eventos, na formação de uma rede com outros DJs e parte do público, na busca de informações, na compra de discos e equipamentos. Acho que atrapalha quando as “tretas” nas redes sociais alcançam uma dimensão maior do que deveriam.
18) RM: Quais as vantagens e desvantagens do acesso à tecnologia de gravação (home estúdio)?
Leo Vidigal: Não lido muito com essa parte, mas muitos produtores de reggae preferem usar equipamentos analógicos e mesmo equipamentos de época. Acham que o som que se consegue com esses equipamentos remete aos clássicos do reggae. Mas entendo que é algo para poucos, pois estes equipamentos são raros e caros. Também nesse caso a tecnologia digital democratizou a produção, o que também é muito interessante.
19) RM: O que você faz efetivamente para se diferenciar como DJ e dentro do seu nicho musical?
Leo Vidigal: Pesquiso muito, compro discos novos quando posso e confio no meu conhecimento acumulado e na minha intuição para achar e tocar boas faixas no momento certo. Atualmente só compro discos que vou tocar em algum momento, geralmente com o que arrecado nos eventos.
Para escutar música em casa posso usar o meu toca-discos, mas algumas vezes uso os serviços de streaming, principalmente para músicas novas. Muitas músicas novas não são mais lançadas em vinil e quando são lançadas assim, as tiragens são pequenas. Quando quero muito tocar uma faixa nova uso o notebook.
20) RM: Como você analisa o cenário musical para o DJ? Em sua opinião quais os DJs foram as revelações nas últimas décadas e quais regrediram?
Leo Vidigal: Não tenho tanto conhecimento sobre o cenário dos DJs, mas fico contente pela ascensão das mulheres nesse meio profissional, que estão diversificando um meio que sempre foi dominado pelos homens. O resultado é uma cena bem mais interessante e representativa. Individualmente, não saberia dizer quais são as revelações e quais regrediram, acho que é uma profissão que precisa ser mais valorizada como um todo.
21) RM: Quais os DJs já conhecidos do público que você tem como exemplo de profissionalismo e qualidade artística?
Leo Vidigal: No reggae penso em David Katz e Gladdy Wax, no Reino Unido, e no Brasil penso em Lys Ventura, Feminine Hi Fi, Tarcísio Selektah, Ademar Danilo e Marcus Vinicius, mas poderia citar muitos outros. Meus colegas no Deskareggae (Rafael Rosa e Pedro Varela) também me dão bons exemplos de como lidar com uma pista de dança.
22) RM: Quais as situações mais inusitadas aconteceram na sua carreira musical (falta de condição técnica para show, brigas, gafes, show em ambiente ou público tosco, cantar e não receber, ser cantado etc)?
Leo Vidigal: No início da trajetória da Radiola Sound System, um dos DJs tentou tocar uma faixa que não era reggae e foi vaiado pela pista (risos). As sessões do Deskareggae no centro de Belo Horizonte – MG foram memoráveis, principalmente pelo entusiasmo das pessoas.
Também gostamos muito de tocar fora de Belo Horizonte – RJ, em outros estados (RJ, SP, MA) ou no interior de MG, já tocamos em Itabira, Sabará e Ouro Preto, entre outras cidades. Sobre brigas, elas são raras em eventos de reggae, a grande maioria do público é pacífica e consciente.
Felizmente nunca levei calote, quando toquei de graça era sempre algo feito em acordo com a produção, em que todos os DJs estavam dando uma força para uma pessoa ou uma causa.
O Deska produz a maioria dos eventos em que toca, então não temos esse problema e fazemos questão de pagar os que tocam ou atuam como MCs em nossos eventos.
Como público, o mais surpreendente aconteceu uma vez comigo na Jamaica, quando estava em uma sessão em uma das comunidades mais barra pesada de Kingston. Tudo correu bem até amanhecer, quando de repente chegaram várias viaturas da polícia, com policiais colocando metralhadoras para fora dos carros e mandando parar a música e acabar o evento.
A música parou imediatamente e as pessoas ficaram esperando os policiais irem embora. Mal viraram a esquina, o MC anunciou que ali quem mandava eram eles e vi um grupo mirando armas para cima e atirando para marcar território. O barulho e a fumaça das armas eram impressionantes, o verdadeiro “pow pow”…
23) RM: O que lhe deixa mais feliz e mais triste na carreira de DJ?
Leo Vidigal: O que me deixa mais feliz é fazer a pista encher e alegrar as pessoas com as músicas que garimpei arduamente. Gosto muito também de falar um pouco por cima das faixas e de passar informações sobre as músicas, quando isso é pertinente. Também fico muito feliz quando alguém do público vem me perguntar qual música toquei ou vem pedir mais detalhes sobre a música.
Não gosto muito de quem vem pedir música agressivamente ou de forma desrespeitosa, mas isso não acontece há muito tempo comigo, pois hoje toco mais em eventos que eu mesmo produzo, eventos em que as pessoas são bem conscientes do tipo de música que vai tocar. O que mais me entristece é a falta de valorização que sofrem a maioria dos DJs, muitas vezes mal pagos e maltratados. O DJ ou a DJ são a alma da festa.
24) RM: O que você diz para alguém que quer trilhar uma carreira como DJ?
Leo Vidigal: Não se acomode, pesquise bastante sobre a música que você vai tocar, esteja consciente de toda a cultura que sustenta aquela música. Seja generoso com o público e com você mesmo, não se torne outra pessoa para agradar, mas faça seus agrados de vez em quando, pois muitas vezes a música pedida se encaixa bem no set, sem com isso perder a sua personalidade. Confie que a experiência vai te trazer mais confiança. Toque o que te faz feliz, as pessoas sentem isso e aplaudem.
Apoie os artistas, divulgue também os eventos de bandas e outros com músicos, faça eventos conjuntos com eles, vamos fortalecer a cena como um todo. Faça parte de grupos, sound systems, coletivos, associações, assista a outros DJs de vez em quando (embora seja difícil, porque muitas vezes as pessoas estão tocando no mesmo horário), são maneiras bem interessantes de se educar em relação à música e fazer algo de bom para o coletivo. Seja gentil e respeitoso com as pessoas.
25) RM: Como você analisa a cobertura feita pela grande mídia da cena musical brasileira?
Leo Vidigal: A cobertura feita pela grande mídia da cena musical brasileira é muito superficial, centrada em poucos nomes, pouca pesquisa e muito deslumbramento, com as exceções de praxe. As rádios e podcasts são os meios que vêm fazendo a melhor cobertura da cena musical.
26) RM: O circuito de Bar na cidade que você mora ainda é uma boa opção de trabalho para o DJ?
Leo Vidigal: Mais ou menos. Os bares têm poucos recursos para pagar os DJs apropriadamente. O chamado couvert às vezes não cobre nem os custos que você tem. Mas se você tiver paciência para formar público e encontrar um lugar que o aceite como residente é possível fazer coisas boas. As casas noturnas como A Obra e Matriz em Belo Horizonte – MG oferecem melhores condições do que os bares.
27) RM: Você acha que o DJ tomou o lugar do músico ou banda?
Leo Vidigal: Claro que não e nem poderia ser essa a intenção. As bandas, principalmente as autorais, é que podem ser a fonte dos sets do futuro. Seria legal se todo mundo valorizasse a profissão de músico e a profissão de DJ, porque o DJ também divulga o trabalho do músico.
28) RM: Como você analisa o cenário do reggae no Brasil. Em sua opinião quais foram as revelações musicais nas últimas décadas e quais permaneceram com obras consistentes e quais regrediram?
Leo Vidigal: Também acho difícil falar, a cena reggae brasileira é muito variada, é um país-continente e bandas são formadas e acabam todos os dias. Bandas como Tribo de Jah, Ponto de Equilíbrio, Celso Moretti, entre outras vão heroicamente resistindo, mas é uma cena underground e se o público não der um suporte, fica difícil sobreviver de música neste país.
29) RM: Você é Rastafári?
Leo Vidigal: Respeito e estudo a religião e modo de vida Rastafári, mas não sou praticante de nenhuma religião.
30) RM: Alguns adeptos da religião Rastafári afirmam que só eles fazem o reggae verdadeiro. Como você analisa tal afirmação?
Leo Vidigal: Alguns artistas-chave da história do reggae não se declararam rastas, como Toots Hibberts, Jimmy Cliff, além de artistas de reggae fora da Jamaica. Acredito que a afirmação que está na pergunta acontece porque algumas pessoas acham que merecem mais reconhecimento, mas não nestes termos, por isso também me dou o direito de discordar.
31) RM: Na sua opinião quais os motivos da cena reggae no Brasil não ter o mesmo prestígio que tem na Europa, nos EUA e no exterior em geral?
Leo Vidigal: Uma coisa é o prestígio cultural, outra é o sucesso comercial. Nos anos 1990, o reggae era praticamente uma música mainstream no Brasil e recebia grande cobertura da imprensa, com bandas como Cidade Negra, Natiruts, Tribo de Jah, Skank e cantores e compositores como Edson Gomes lotando os shows com regularidade.
No Maranhão se vivia a “era de ouro” do reggae, com os sound systems locais, as radiolas, liderando a cena e bandas como Tribo de Jah, Guetos e outras ganhando espaço. Depois disso, desfrutaram de prestígio cultural em todo o Brasil (apesar da cobertura superficial da imprensa), mas o reggae não era mais uma música de sucesso comercial como era antes.
No entanto, manteve um público fiel, porque sua mensagem anticonformista e positiva afeta as pessoas de maneira intensa. Mas em todo o mundo o reggae é uma cena underground, é a cena principal apenas na Jamaica.
No século XXI, os sound systems se tornaram pontas de lança da cena reggae brasileira, continuando a história pioneira no Maranhão e ganhando adeptos no Norte, Nordeste e Sudeste. Agora novas fronteiras se apresentam, como a região Centro-Oeste.
O reggae tem seus ciclos de expansão e retração que são diferentes em cada região e estado do Brasil, mas está sempre em evidência, mesmo que muitos não enxerguem. No exterior isso também acontece, nos Estados Unidos a dinâmica é parecida com a do Brasil, guardadas as proporções, e em lugares como a Nova Zelândia e muitos países da África e Oceania o reggae se tornou um meio de expressão poderoso para os povos nativos.
32) RM: Quais os prós e contras de se apresentar com o formato Sound System?
Leo Vidigal: É difícil falar em termos de prós e contras nesse caso, pois os sound systems não são apenas uma forma de divulgar a música ou de reproduzir a música. Eles estão no DNA do reggae, as produções de reggae começaram para fornecer músicas novas e exclusivas para os sound systems, muitas faixas musicais ficaram anos no acervo de apenas um sound system na Jamaica até serem lançadas comercialmente.
Depois, muitos donos de sound system na Jamaica se tornaram produtores, mas todas as grandes mudanças e transformações do reggae na Jamaica e no Reino Unido, pelo menos até os anos 1990, foram gestadas e desenvolvidas nos sound systems. A maioria dos artistas na Jamaica até os dias de hoje começou e/ou passou por um sound system. Mais tarde essa relação foi se tornando menos umbilical, mas ainda é relevante.
33) RM: Quais as diferenças de se apresentar com banda em relação ao formato com Sound System?
Leo Vidigal: Uma característica dos sounds é que há muita variedade e você pode cantar todo tipo de reggae que achar interessante para você. As bandas podem ter um componente autoral e tocar algo de novo, ainda não ouvido.
34) RM: Como você analisa a relação que se faz do reggae e o uso da maconha?
Leo Vidigal: O reggae, as pessoas que tocam esse gênero musical e seu público muitas vezes foram condenados e perseguidos por essa relação com o uso da maconha, mas a verdade é que as canções que tratam do assunto cannabis sativa, são uma minoria entre o cancioneiro regueiro, embora seja um tema relevante.
O que há é muito racismo, preconceito, hipocrisia e desinformação no que é veiculado na imprensa e por pessoas ignorantes ou interesseiras sobre uma erva que é muito menos nociva para a saúde do que o álcool e outras drogas legais e é fartamente consumida por pessoas que, em público, a condenam.
Trata-se de uma erva que não leva à violência, nem causa danos relevantes para a sociedade, mas parece que a sua ilegalidade é lucrativa para alguns, diretamente ou indiretamente, que usam os meios de comunicação para manterem as pessoas desinformadas e as prisões cheias de indivíduos que apenas fumaram quantidades pequenas dessa planta proibida, a maioria negras.
Para os que praticam a religião rastafari trata-se de uma erva sagrada, usada em seus rituais. Hoje em dia as pesquisas científicas de médicos e laboratórios comprovaram os efeitos benéficos desta e outras ervas condenadas no ser humano. O consumo em pequenas quantidades não é mais criminalizado aqui e na Jamaica.
35) RM: Como você analisa a relação que se faz do reggae com a cultura Rastafári?
Leo Vidigal: O rastafarismo está na raiz do reggae, tanto filosoficamente quanto musicalmente, mas há outras raízes também, as religiões afro-jamaicanas como a kumina, as canções de trabalho, os sound systems, entre outras.
Na música em si temos os instrumentos trazidos pelos europeus misturados com instrumentos indígenas e outros de origem africana, enfim, o reggae nunca foi algo unilateral, o reggae é o resultado complexo de uma troca cultural intensa, mesmo que desigual, porque ocorreu em um contexto pós-colonial.
Essa relação também foi fonte de muito preconceito e perseguição na Jamaica, mas agora há um respeito arduamente conquistado pelos rastas. Também entendo que a criação de uma nova religião nas condições precárias do Caribe colonial foi um ato de extrema coragem e inventividade do povo jamaicano.
Uma religião e um modo de vida que oferece uma oportunidade para se lidar com questões espirituais, viver de uma forma ritualizada, algo que é muito importante para muitas pessoas, de lidar com as agruras do mundo coletivamente, ao mesmo tempo trazendo autoestima e esperança para a população negra jamaicana, deixada na pobreza depois da abolição da escravidão.
Uma religião e um modo de vida que apresenta aspectos muito divulgados da cultura do colonizador, mas que na verdade foram copiados e transformados pelos europeus a partir do contato com outros povos, como a monarquia e o monoteísmo.
A polêmica entronização do imperador etíope Haile Selassie (nascido Tafari Makonnen; Ejersa Goro, 23 de julho de 1892 – Adis Abeba, 27 de agosto de 1975) como uma espécie de Deus vivo, ou uma reencarnação de Jesus Cristo, se formos pensar outra interpretação das teologias rastafari, não me parece tão diferente de crenças até hoje professadas em religiões aceitas pela maioria da população sem problemas.
Muitas canções associadas ao rastafarismo são versões de hinos religiosos anteriores, algo que aprendi com o etnomusicólogo Kenneth Bilby, inclusive há um artigo que escrevi para o jornal Estado de Minas que vem com uma entrevista com este professor e pesquisador, basta procurar pelo nome “Vibrações positivas, conexões desvendadas”, que é o nome do artigo.
O fato de a Etiópia ter sido a única nação africana a ter resistido com sucesso à cruel, genocida e predatória colonização europeia, ao vencer a batalha de Adwa contra os italianos em 1896, é uma razão poderosa para a sua disseminação, muitas vezes escondida de forma cínica e deliberada.
Selassie como figura histórica ainda precisa ser mais bem estudado, pois o véu de desinformação sobre ele é grande, mas ele teve uma importância inegável no contexto africano, tanto que construiu na capital Addis Abeba a sede da OUA, Organização da Unidade Africana.
36) RM: Apresente seu trabalho com Deskareggae Sounds.
Leo Vidigal: No Deskareggae, sou produtor e DJ, ou melhor selector, como dizemos no meio dos sound systems. Nos bons tempos ajudava na montagem, já carreguei muita caixa de som, enrolei e desenrolei muito cabo, mas hoje em dia meu físico não me permite trabalhar tanto nessa parte, ajudo no que posso.
Sou conhecido no meio pela minha longevidade e pelo meu trabalho como pesquisador, no Brasil e em outros países, então faço contatos e divulgo o nome do sound, participo da elaboração de projetos para leis de incentivo, entre outras coisas.
Participo ainda da organização de sessões de filmes de reggae e rodas de conversa antes dos eventos, mas minha função principal é atuar como selector, tocando nos eventos, para fazer as pessoas felizes.
Quando há um evento do Deskareggae é algo muito especial, fico vários dias pensando no set e em como fazer o meu melhor, é uma grande alegria tocar nos eventos de reggae, para pessoas que valorizam esta música e cultura, uma boa maneira de usar meu tempo livre.
37) RM: Quais os seus projetos futuros?
Leo Vidigal: Pretendo me dedicar mais a ser DJ, aprimorar a minha coleção e fazer mais eventos de reggae, com discotecagens comentadas, além de retomar os programas de reggae que fiz na década de 1990 e na década de 2010, sou radialista por formação e adoro fazer rádio.
Quem quiser um set variado, com todos os estilos de reggae, de um DJ com 33 anos de experiência, baseada em uma coleção de discos de 40 anos, seja uma discotecagem comentada, uma seleção mais para se ouvir ou mais para dançar e pensar, basta entrar em contato com Leo Vidigal ou Nardo Leo, como também sou conhecido.
38) RM: Quais seus contatos para show e para os fãs?
Leo Vidigal: [email protected]
| https://www.instagram.com/leovidigal67
| https://sonic-street-technologies.com
Para contratar os DJs ou uma apresentação completa do Deskareggae Sound System, com 13 anos de história e experiência para incendiar a pista, cada DJ com seu estilo próprio, mande uma mensagem para: [email protected]
Links para os meus artigos em https://encurtador.com.br/te0SO
A Jamaica é aqui: arranjos audiovisuais de territórios musicados: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/EMSS-7SEKLH
A Popular Culture Research Methodology: Sound System Outernational: https://journals.openedition.org/volume/5249
Algumas considerações sobre a música nos filmes de Jean Rouch: https://opiniaopublica.ufmg.br/devires/index.php/Devires/article/download/200/69#
Um artista com excelente formação acadêmica e bela trajetória. Ótima entrevista!