Entre os artistas insatisfeitos na obra de Machado, o mais citado é o compositor Pestana do conto “Um Homem Célebre”. O mais obscuro (e talvez o mais melancólico) é o Mestre Romão deste conto. Pestana queria ser compositor clássico, mas só sabia compor polcas de sucesso; Mestre Romão nem esse consolo tem. O que tem é uma ânsia desmedida de expressão, mas tudo que consegue fazer é reger as obras alheias, entendê-las, e encantar-se com sua beleza. A Providência o privou da sorte de ter obras próprias.
Diagnostica Machado: “Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens”. Todas as inspirações melódicas do Mestre Romão morriam metaforicamente no que Augusto denominou “o molambo da língua paralítica”, ou seja, a incapacidade de transformar em signos os sentimentos difusos que experimentamos na alma.
Por que motivo Machado preocupava-se tanto com os compositores? Como nunca li uma biografia dele, não sei se teve educação musical, ou se era ouvinte habitual dos clássicos. Fosse-o ou não, o fato é que numerosas vezes recorreu a músicos para falar de artistas que tentam se expressar e não conseguem. No caso de Mestre Romão, o sentimento existe, a inspiração existe, a técnica existe… O que não existe é a liberdade íntima de criar, a ousadia despreocupada, o “E daí?” triunfal e libertador de quem consegue sobrepor à auto-crítica a auto-expressão.
Um músico erudito (excelente instrumentista) me disse uma vez invejar algumas melodias que eu tinha composto, porque ele próprio jamais quebrara essa barreira. Observei que ele, com a bagagem que tinha, poderia compor coisa muito melhor, e escutei: “Ah, quem me dera… É tudo muito difícil.” Para alguns temperamentos, mais técnica significa mais dificuldades, e não mais soluções. “Quem lê muito escreve pouco”, já disse um mestre, e isto corrobora a idéia de que para criar é preciso aprender, e depois esquecer que se aprendeu.
Pobre do Mestre Romão! Quando casou, começou a compor um “canto esponsalício”, gênero que só pelo nome já intimida. Em vez de dedicar uma polca à esposa, que amava sinceramente, quis compor alguma coisa à altura do amor que sentia, o que é sempre uma ameaça à criatividade. “Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta; nada”. A esposa morre e o canto não fica pronto. Morre Mestre Romão, ao fim da história – e as notas que lhe faltavam ele as ouve cantaroladas pela moça da casa vizinha, recém-casada e em pleno enlevo amoroso. Era a Música Popular Brasileira que brotava dos quintais, por cima dos muros, subúrbios afora, e só Machado e meia-dúzia de escritores a ouviam.
*Bráulio Tavares – Jornalista, escritor e compositor paraibano. Este texto foi editado em 19/10/2008 na sua coluna diária no Jornal da Paraíba – Campina Grande – PB (http://jornaldaparaiba.globo.com).
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