Tuti Fornari é pesquisador, carreira Pq, nível A, no Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), desde setembro de 2008. Tem PosDoc pelo Grupo de Cognição Musical do Centro Finlandês de Excelência da Universidade de Jyväskylä, Finlândia (2007).
Tem PosDoc em Síntese sonora evolutiva, realizado no NICS, patrocinado pela Fapesp, processo: 04 / 00499-6. (2004). Tem Doutorado em Engenharia elétrica pela Faculdade de engenharia elétrica e computação (FEEC) da UNICAMP.
Foi Pesquisador Visitante no Centro de Pesquisa no Center for Computer Research in Music and Acoustics (CCRMA), da Universidade de Stanford, California, EUA (1996). Tem Mestrado em Engenharia elétrica pela FEEC (1994). Fez Bacharelado em Música Popular, modalidade Piano, no Departamento de Música do Instituto de Artes (IA) / UNICAMP (1994).
Tem Bacharelado em Engenharia elétrica pela FEEC (1990). Áreas de pesquisa: Música e Tecnologia, Arte Computacional Multimodal, Síntese Sonora, Psicoacústica, Processamento de Áudio, Computação Evolutiva, Música Interativa, Recuperação de Informações Musicais, Cognição Musical, Neurociência e música e Artivismo.
Segue abaixo entrevista exclusiva com Tuti Fornari para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 15.11.2024:
01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal?
Tuti Fornari: Nasci no dia 15 de novembro de 1966 em São Paulo, mas cresci em São Bernardo do Campo, SP. Registrado como José Eduardo Fornari Novo Junior.
02) RM: Fale do seu primeiro contato com a música.
Tuti Fornari: Eu comecei a tocar piano de ouvido, influenciado pela minha família paterna, que sempre teve uma forte conexão com a música. Minha avó paterna (Nenéca) era muito interessada em artes, cultura e tocava piano.
Ela dizia que “arranhava o piano” pois tocava mais de ouvido do que por partitura. Foi ela quem me ensinou os primeiros acordes, num estilo de ensinar diferente, que ela inventou. Ela tocava um trecho de uma música e depois pedia para que eu decorasse. Desse jeito, lá pelos 5 ou 6 anos de idade, ela me ajudou a tocar o adágio da “Sonata ao luar”, de Beethoven. Isso foi na época um sucesso.
Em seguida, ela tentou me ensinar o “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu, mas aí o nível rítmico da peça era muito mais elevado e eu só fui conseguir dominar essa peça diversos anos mais tarde.
Em casa, havia diversos instrumentos, e todos tocavam de maneira intuitiva. Na casa da minha avó, havia dois pianos: um de armário e um de cauda. Passávamos horas tocando valsas, músicas antigas da sua época e improvisando. Esses momentos de afeto e conexão entre, eu e minha avó fizeram toda a diferença na minha relação com a música.
03) RM: Qual a sua formação acadêmica?
Tuti Fornari: Eu sou pesquisador na Unicamp, uma carreira particular desta universidade. Completei dois pós-doutorados: o primeiro na área de engenharia elétrica, focando em síntese sonora e computação evolutiva, e o segundo em percepção e cognição musical na Universidade de Jyväskylä, na Finlândia.
Fiz meu mestrado enquanto cursava a graduação em música popular, na modalidade: piano. Antes disso, realizei uma graduação em engenharia elétrica na turma de 1986, também na Unicamp. Em 1996, tive a oportunidade de morar nos EUA como pesquisador acadêmico visitante na Universidade de Stanford, no CCRMA (Center for Computer Research in Music and Acoustics).
Após esse período, estendi minha estadia sem bolsa, mas com permissão do CNPq, trabalhando como engenheiro de software em um departamento de áudio e tocando como músico. Em 2001, retornei ao Brasil e finalizei meu doutorado em 2003.
04) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente. Quais deixaram de ter importância?
Tuti Fornari: Minhas influências musicais, com algumas raras exceções, sempre foram predominantemente de músicos instrumentais. Para mim, a verdadeira essência da música está na forma instrumental, enquanto as canções (músicas cantadas, com letra) são uma fusão de música e poesia.
No piano instrumental, os grandes nomes do jazz, como Oscar Peterson e Art Tatum, têm um espaço especial em minha apreciação, assim como o piano brasileiro de César Camargo Mariano, especialmente seu álbum “Samambaia”, com Hélio Delmiro.
Além deles, admiro diversos artistas, tanto da música instrumental quanto da canção, como Bill Evans, Chick Corea, João Gilberto, João Bosco, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Tom Jobim, entre muitos outros. Quanto às influências que deixaram de ser significativas, é difícil fazer essa avaliação. Quando uma influência é importante, ela permanece assim. No entanto, de modo geral, a música atualmente perdeu a importância que antes tinha para mim.
05) RM: Quando, como e onde você começou a sua carreira musical?
Tuti Fornari: Antes dos 10 anos de idade, eu já era convidado para tocar em eventos e apresentações. Nessa faixa de idade, eu ia muito a uma loja de instrumentos musicais em São Bernardo chamada Obradec, que ainda existe, para tocar os instrumentos.
A dona da loja me convidou para tocar em uma exposição que eles iam fazer em um shopping, e eu ficava tocando os órgãos Gambitt e Minami, mas os bons mesmo de tocar eram os japoneses da Yamaha. Mas eu tocava tudo de ouvido, e não tinha muito interesse em aprender a ler partituras.
Meu pai e o irmão dele, meu tio, também eram músicos e tocavam teclados de ouvido (piano, vibrafone, acordeon, etc). Ambos não sabiam ler cifras ou partituras. Eu segui os passos deles, tocando em festas, acompanhando cantores, tanto em grupos quanto me apresentando sozinho.
A minha facilidade era tirar músicas de ouvido, o que dificultou a minha leitura musical, mas me ajudou a ser capaz de tirar a maioria das músicas populares rapidamente, e a tocá-las em qualquer tom, transpondo para outra tonalidade quando necessário, o que é muito útil, especialmente acompanhando cantores.
06) RM: Quantos álbuns lançados? Cite os álbuns que já participou como Tecladista/Pianista ou tocando outros instrumentos?
Tuti Fornari: Lancei três álbuns em torno de 2005. O primeiro, chamado “Saudobra”, significa saudade do Brasil. Todas as faixas são instrumentais e compostas por mim ao piano.
O segundo álbum, “Novina”, é uma simplificação de “nova vida nova”. Nele, as peças são tocadas em piano e violão, e há uma grande similaridade com o LP “Samambaia”, de César Camargo Mariano e Hélio Delmiro. No “Novina”, no entanto, tanto o piano quanto o violão foram tocados por mim, com bastante edição para alcançar o maior grau de perfeição possível. É como um trabalho renascentista, onde o artista faz tudo: pinta o quadro, monta a moldura, ajusta os detalhes.
O terceiro álbum, “Acalanto”, é um LP de músicas infantis, criado em um momento especial da minha vida, quando tive meus dois filhos. Dentre os álbuns, meu favorito é “Novina”, pela forte influência de “Samambaia”.
Todos os meus álbuns são completamente autorais, incluindo a arte da capa, a fotografia, os textos, a composição, a performance (piano, teclado, violão), gravação, mixagem e masterização. Após o lançamento desses álbuns, a crise dos CDs chegou, fazendo com que a música passasse a ser consumida digitalmente.
Depois de 2008, quando iniciei minha carreira acadêmica, de pesquisador na Unicamp, parti para uma produção musical mais engajada com a pesquisa, explorando novas sonoridades e envolvendo a pesquisa científica em música, chamada: Musicologia Sistemática.
07) RM: Apresente seus projetos de pesquisas de mestrado e doutorado.
Tuti Fornari: Meu projeto de mestrado foi focado no desenvolvimento de operadores espectrais para a transformação de timbre musical. A ideia era criar uma família de funções matemáticas que alterassem o espectro sonoro (no domínio da frequência), com o objetivo de tornar essas alterações musicalmente interessantes.
Inicialmente, planejava continuar esse trabalho no doutorado, mas, ao ingressar na Universidade de Stanford, mudei meu foco. Em Stanford, havia uma pesquisa interessante sendo conduzida por Xavier Serra sob a orientação de Julius O. Smith, que envolvia modelagem física para a simulação de instrumentos musicais.
Essa abordagem consiste em desenvolver equações que simulam, de maneira virtual, o comportamento dos instrumentos musicais acústicos. Tive dificuldades iniciais, não só pela barreira da linguagem — já que mal falava inglês na época — mas também por me adaptar ao novo campo de estudo. No entanto, foi um aprendizado valioso.
A modelagem física acabou sendo superada pela síntese wavetable, que se baseia na gravação do som original dos instrumentos, algo que provou ser mais eficiente do que simular o som através de equações dinâmicas. Minha pesquisa se direcionou para a síntese espectral, com base no trabalho de Xavier Serra.
Durante o doutorado, foquei em processos de computação evolutiva para a geração de segmentos sonoros musicais, explorando algoritmos que poderiam criar sons de maneira autônoma. Depois de concluir a pesquisa de doutorado no CCRMA, permaneci nos Estados Unidos por vários anos.
Quando retornei ao Brasil, encontrei na Unicamp um cenário em que a computação evolutiva já abria caminho para tecnologias precursoras das atuais inteligências artificiais, como redes generativas adversariais (GANs). Essas redes utilizavam duas inteligências artificiais; uma gerando novos possíveis resultados e outra selecionando os melhores resultados.
Apesar dos avanços, um dos desafios das inteligências artificiais é a ausência de uma explicação através dos passos necessários para se chegar aos melhores resultados encontrados (funcionando na base da “tentativa e erro”).
08) RM: Como é o seu processo de compor?
Tuti Fornari: Meu processo é sistemático, mas intuitivo. Eu permito que a resposta se revele por si mesma. Como disse Einstein: “Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio – e eis que a verdade se revela”.
É exatamente isso: quando me permito entrar em um estado de entrega, um processo abdutivo acontece, como a lâmpada que acende acima da cabeça de um personagem em cartoons.
Assim, passo a encontrar um tipo de “fio condutor”, de pensamentos que naturalmente se encadeiam dentro de um contexto temático, resultando numa nova composição, a qual eu sistematicamente organizo e posteriormente registro, na forma de partitura ou fonograma.
No caso dos meus três álbuns, o tema de “Saudobra” foi a minha volta para o Brasil, da Califórnia, EUA (onde morei 6 anos, no final da década de 1990). Em “Novina”, o tema era o encontro harmônico e rítmico do piano e do violão brasileiro (ambos tocados por mim).
No caso do “Acalanto”, o tema era o nascimento de meus dois filhos (o nenezinho da capa agora é adulto e faz mestrado em filosofia, na Unicamp).
09) RM: Quais são seus principais parceiros de composição?
Tuti Fornari: Eu não costumo trabalhar com parceiros, e compor sozinho tem se revelado a melhor abordagem para minha prática musical. À medida que me aprofundei nesse processo, percebi que essa autonomia permite uma maior liberdade criativa, pois não dependo de outros para realizar minhas ideias.
No final do meu período nos Estados Unidos, e em outras experiências posteriores, tentei estabelecer colaborações em projetos, mas frequentemente encontrei dificuldades, como a falta de comprometimento de parceiros. Por isso, não busco ou fomento parcerias.
Eu mesmo, e os eventos fortuitos que ocorrem, me inspiram e me guiam. Essa escolha certamente exige uma disciplina considerável, mas uma vez que me engajo no processo de composição, essa disciplina se torna orgânica e a experiência se transforma em um ato instigante.
Embora sejamos naturalmente inclinados à colaboração, percebo que, ao compor individualmente, consigo expressar minha criatividade de forma mais autêntica. Mesmo ao trabalhar sozinho, não estou isolado, pois a sociedade e suas influências certamente moldaram minha criação.
É como o idioma que utilizamos, que é uma construção social colaborativa, assim como nossas ideias, que são frequentemente influenciadas por processos meméticos (o meme é a menor unidade informacional da cultura, assim como o gene o é na biologia).
Nesse sentido, considero que o ato de compor também é um processo memético. Trabalhar de forma independente permite-me atuar com maior agilidade, pois não preciso lidar com mudanças de ideia ou atitude de parceiros, o que possibilita a realização mais deliberativa e livre de projetos assim que a inspiração se manifesta. Essa autonomia é fundamental para meu processo criativo.
10) RM: Quais os prós e contras de desenvolver uma carreira de professor e pesquisador na academia?
Tuti Fornari: Um dos principais contras é a remuneração, que frequentemente é inferior à de profissionais com formação equivalente que atuam no mercado. No entanto, um grande ponto positivo é a liberdade para direcionar nossas pesquisas conforme nossos interesses, além da oportunidade de participar de congressos e propor projetos que realmente consideramos relevantes. Para mim, pesquisar sempre foi uma satisfação.
Desde criança, gostava de fazer experimentos. Eu tinha um pequeno laboratório, com tubos de ensaios e produtos químicos. Passava horas sozinho, me entretendo entre a ciência e a arte (tocando piano de ouvido).
Em 2007, após fazer o meu segundo pós-doutorado, em cognição musical, passei a me interessar mais pelo estudo da sensação, percepção, identificação e emoção musical. Assim, acabei estudando a arte musical por duas perspectivas, distintas, mas complementares: a do que faz (compositor) e a do que aprecia (ouvinte).
11) RM: Quais as estratégias de planejamento da sua carreira acadêmica?
Tuti Fornari: Minha estratégia de planejamento de carreira acadêmica sempre foi guiada pelo interesse genuíno na pesquisa e pelo método científico. É fundamental ter uma atitude investigativa e evitar a tendência, comum nas humanidades, de citar grandes autores como se fossem detentores de uma verdade absoluta.
O que realmente me interessa é a criação de modelos que permitam testar hipóteses dentro de certos parâmetros, interpretando dados de maneira a alcançar conclusões bem fundamentadas.
O foco deve ser sempre na busca pela verdade, e não em vencer argumentos ou idolatrar autores famosos. Acredito que, quando se adota essa postura investigativa e aberta, o desenvolvimento da carreira acadêmica ocorre de forma mais natural, com oportunidades surgindo à medida que se avança no conhecimento e nas descobertas.
Atualmente, estou no topo da minha carreira, que é de pesquisador (carreira Pq), que tem três níveis (C, B e A), ou seja, estou no nível Pq-A. Minha intenção daqui para frente é continuar orientando alunos de pós-graduação, escrevendo livros, artigos (https://sites.google.com/site/tutifornari/publications) e blogs sobre musicologia sistemática (https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/posts-anteriores). E quem sabe também voltar a compor e performar minhas produções musicais.
Este ano (2024) a editora da Unicamp publicou um livro de minha autoria, disponível em: https://editoraunicamp.com.br/catalogo/?id=1882 . O título deste livro é “Mentes, máquinas e música” e traz minhas explicações sobre dúvidas que eu tive um dia, relacionadas à sensação, percepção, cognição, emoção e tecnologia musical.
12) RM: Quais as ações empreendedoras que você pratica para desenvolver a sua carreira acadêmica?
Tuti Fornari: “Ações empreendedoras” era algo de certo modo distante da carreira acadêmica. Percebo, no entanto, que atualmente há uma aproximação entre a academia e o modelo de empreendedorismo. No entanto, tenho minhas ressalvas quanto a essa tendência.
Acredito que a pesquisa deve ser um espaço de liberdade, onde o pesquisador tem a autonomia de investigar temas que lhe interessam genuinamente e publicar resultados não tendenciosos.
Historicamente, muitos avanços significativos surgiram de pesquisas que, em um primeiro momento, não possuíam propósito prático, mas que acabaram adquirindo tremendo valor, décadas ou séculos depois. Portanto, a imposição de um modelo empreendedor que busca resultados imediatos e pragmáticos pode, de fato, engessar o potencial inovador da pesquisa acadêmica.
Os motivos que levam alguém a optar pela carreira acadêmica em vez de seguir um caminho mais lucrativo no empreendedorismo frequentemente residem nessa busca pela liberdade de investigar, na criatividade. É provável que o meio empresarial precise de um tempo para reconhecer que permitir essa liberdade criativa pode gerar um ambiente fértil para o desenvolvimento de novas ideias e produtos.
Na academia, é inegável que a pressão para publicar constantemente – o famoso “publique ou pereça” – se assemelha a uma exigência darwiniana dentro do meio acadêmico. A prioridade na pesquisa muitas vezes acaba se tornando a produção de artigos e a condução de projetos, além da orientação de alunos.
13) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento da sua carreira musical?
Tuti Fornari: A internet ajuda mais do que atrapalha. As redes sociais da internet, como o youtube, permitem registrar e divulgar gratuitamente nossas composições e performances.
Lógico que, como corporações que são, sempre existirão solavancos, injustiças, manipulações e cancelamentos nas redes sociais, mas no geral vejo com bons olhos a inserção da produção e divulgação musical e cultural via internet.
Existem desvantagens com relação à perda de materialidade da obra musical. A perda do CD como um produto físico, um objeto que representava a música, é significativa. Sendo a música a mais imaterial das artes, há uma série de questões complexas relacionadas a direitos autorais.
Enquanto a cópia de um quadro famoso dá trabalho, a cópia de uma música é banal. Essa falta de um suporte físico para a obra musical resulta em uma desmaterialização da arte sonora que a torna memética.
Ainda assim, a dinâmica da indústria musical continua a se manter, com muitos artistas dependendo de performances ao vivo e shows para gerar a maior parte de sua renda, uma prática que sempre existiu e que provavelmente continuará a ser fundamental.
14) RM: Quais as vantagens e desvantagens do acesso à tecnologia de gravação (home estúdio)?
Tuti Fornari: Sou otimista quanto ao uso da tecnologia digital na produção musical, incluindo os recentes avanços em inteligência artificial, de LLM (Large Language Models) como o ChatGPT, o Gemini e a sua versão musical, o Udio, especializado em gerar músicas e canções pop.
Embora eu acredite que as músicas geradas por IA – Inteligência Artificial serão amplamente aceitas pelo público, não penso que essa tecnologia substituirá músicos e compositores humanos. Afinal, essas ferramentas apenas replicam padrões e criam “mais do mesmo”, enquanto a verdadeira criatividade e inovação são, a meu ver, inerentemente humanas.
Uma grande vantagem do acesso à tecnologia de gravação em home studio é a democratização da produção de música autoral, em decorrência da possibilidade de produzir um álbum integralmente em casa. Eu mesmo gravei meus três CDs dessa maneira.
Hoje os home studios podem alcançar uma qualidade comparável aos dos estúdios profissionais do passado. Antigamente, os músicos precisavam assinar contratos com gravadoras para conseguir gravar suas músicas em equipamentos caríssimos.
Agora, houve uma democratização sem precedentes na análise, processamento e síntese de informações sonoras, o que permite que mais pessoas participem do processo criativo e tenham autonomia em suas produções.
15) RM: No passado a grande dificuldade era gravar um disco e desenvolver evolutivamente a carreira. Hoje gravar um disco não é mais o grande obstáculo. Mas, a concorrência de mercado se tornou o grande desafio. O que um músico deve fazer efetivamente para se diferenciar dentro do seu nicho musical?
Tuti Fornari: A música, antes de tudo, depende do talento do criador, mas reconhecer esse talento em si mesmo pode ser um desafio. No entanto, se a música for uma necessidade essencial para o artista, ele deve seguir essa vocação com determinação.
Ao longo da minha vida, percebi que aqueles que não alcançaram seus objetivos frequentemente estavam sabotando a si mesmos. Por outro lado, os que perseguiram a carreira com obstinação acabaram atingindo resultados satisfatórios, ainda que diferentes dos inicialmente planejados. Acredito que existe espaço para todos. A dificuldade é encontrar este espaço.
O artista que entende e aplica estratégias de divulgação de sua obra, que tem disposição e perseverança para continuar incansavelmente tentando, “batendo em portas fechadas” e construindo a sua rede social de fãs, certamente tem muito mais chance de emplacar no meio musical do que um talentoso músico que se isola e espera que o seu gênio criativo seja um dia descoberto e reconhecido.
Além disso, é preciso reconhecer que a música, cada vez mais, vem sendo usada como ferramenta de persuasão, seja em campanhas publicitárias, seja em contextos políticos ou religiosos.
A música comercial muitas vezes transforma a arte em um veículo para vender produtos ou promover ideologias, em vez de expressar genuinamente a criatividade. Portanto, diferenciar-se depende, primeiramente, do que o artista deseja. Se o objetivo é criar arte autêntica, a abordagem será necessariamente diferente daquela adotada por quem busca o sucesso comercial.
16) RM: Como você analisa o cenário da Música Popular Brasileira. Em sua opinião quais foram as revelações musicais nas últimas décadas e quais permaneceram com obras consistentes e quais regrediram?
Tuti Fornari: É uma pergunta interessante, mas, sinceramente, eu não acompanho muito a produção atual da Música Popular Brasileira. As poucas coisas que escuto não me agradam muito, mas isso não significa que os músicos que fazem música comercial não tenham talento.
Kenny G, por exemplo, era um grande músico de jazz antes de migrar para a música pop. O talento humano sempre existe, mas cumpre a função de seu momento histórico, que é dinâmico e cíclico, o que dá algumas vezes a impressão, para alguém como eu, da geração passada, que a música antes era melhor.
Existem estudos que dizem que o repertório musical que escutamos aproximadamente entre os 15 e os 25 anos de idade, é aquele que iremos sempre considerar como sendo o melhor que já existiu.
Isso ocorre porque nesse período definimos nossa predileção estética. Assim, a tendência é sempre acharmos que a música de nossa juventude (a que escutamos nesse período) é indubitavelmente melhor do que a de nossa maturidade.
Já ouvi professores de música importantes dizendo que não escutam mais músicas, e acredito que isso se deva, em parte, à perda da materialidade da música. Em grande medida, isso se deve ao fato de que antes, tínhamos o CD como um objeto tangível que simbolizava a obra. Com o fim dessa materialidade, o foco se deslocou para o show e a venda de ingressos, e a performance se tornou multimodal — não se trata mais apenas da música, mas de todo um espetáculo visual e sensorial.
Nesse processo, a música acabou se tornando secundária, mas o poder persuasivo da música permanece, mesmo que ela seja apenas um dos diversos elementos das performances. De qualquer modo, é difícil não elevar a obra musical de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos da “época de ouro” da MPB, acima dos padrões musicais anteriores ou atuais.
17) RM: Como você analisa o cenário da música instrumental brasileira. Em sua opinião quais foram as revelações musicais nas últimas décadas e quais permaneceram com obras consistentes e quais regrediram?
Tuti Fornari: Difícil dizer, pois não tenho acompanhado o cenário musical dos últimos anos. Sou da época do Hermeto Pascoal, Heraldo Monte, Sivuca, grupos instrumentais, nacionais, como o Cama de Gato, que se inspiravam em grupos estadunidenses, como o Pat Metheny group, Spyro Gyra, Weather Report, Electric City, Yellow Jackets e muitos outros.
A impressão que tenho é que não surgiu nada de novo nem no mesmo patamar musical, mas provavelmente estou errado. A música, especialmente a instrumental, é uma metáfora da paisagem sonora da nossa vivência e evolui conforme os contextos que habitamos.
Aqueles que se dedicam apenas a reproduzir músicas do passado, mesmo que com um valor quase museológico, dificilmente alcançarão a perfeição das obras originais. Por exemplo, um músico que toca Choro não conseguirá igualar o virtuosismo de Altamiro Carrilho ou Jacob do Bandolim; ao máximo, se aproximará como um imitador.
Há uma tendência de cristalização no processo musical, um peso inercial do que foi feito anteriormente. Eu mesmo fui refém dessa dinâmica. Ao ouvir Oscar Peterson pela primeira vez, fui tomado por um desejo de replicar seu estilo, mas estava tentando tocar música de um passado com o qual não tinha conexão direta.
O que realmente importa é a busca pela autenticidade e pela expressão pessoal. Embora eu não tenha nomes específicos para mencionar como revelações recentes na música instrumental brasileira, acredito que podemos derivar conclusões com base na análise das paisagens sonoras características da nossa época.
18) RM: Quais os artistas e bandas que você acompanhou como músico?
Tuti Fornari: Eu era fascinado pela música instrumental. Considerava esta como a verdadeira música, sendo a canção uma mistura entre música e poesia, da mesma forma que ópera é uma mistura entre literatura e música clássica europeia.
Assim, qualquer produção musical que fosse pura, sem letra, dança, teatro ou cinema, eu estava disposto a acompanhar. Lógico que eu reconhecia o talento de grandes letristas e admirava as famosas trilhas sonoras, como as de John Williams, Nino Rota ou Henry Mancini.
Porém, para mim, a verdadeira música era aquela destituída de conteúdo semântico, como, por exemplo, as composições de Astor Piazzolla, que expressam profunda emoção sem nada dizer.
19) RM: Quais as situações mais inusitadas aconteceram na sua carreira musical (falta de condição técnica para show, brigas, gafes, show em ambiente ou público tosco, cantar e não receber, ser cantado, etc)?
Tuti Fornari: Como disse Oscar Peterson em uma entrevista, o músico é um ser muito competitivo. As pessoas costumam se confundir ao achar que a música é uma arte cooperativa, mas, na verdade, existe uma competição constante.
O Ariano Suassuna também mencionou essa dinâmica, chamando a música do Nordeste de “armorial”, um estandarte que liderava batalhas. Por exemplo, os repentistas simulam duelos, o que reflete esse caráter competitivo.
Uma das piores experiências que tive foi não conseguir ir a um show muito importante de um cantor que eu acompanhava. Eu tinha viajado para São Paulo para ver um grande músico, mas o ônibus atrasou absurdamente. Ao invés de chegar às 22 horas, cheguei só às 23 horas. O outro tecladista que estava lá se recusou a tocar, e o show acabou sendo cancelado. Foi realmente frustrante.
Outra situação inusitada aconteceu quando uma pessoa de uma danceteria queria contratar dois tecladistas, mas não explicou o que deveria ser tocado. Chamei um tecladista com quem nunca tinha tocado antes, e ele era bem lento. Quando chegamos à danceteria, ela estava extremamente lotada e tocava música bate-estaca. Nos anunciaram, e quando começamos a tocar músicas como “Garota de Ipanema”, eu me lembro que as expressões na plateia eram de quem pensava que estávamos tirando sarro deles. Não conseguimos terminar uma música sequer, e o organizador correu para pedir que parássemos.
Ele não queria nos pagar, mas insisti que, como o repertório não foi especificado, ele deveria nos compensar. Falei que não sairíamos de lá e que poderíamos chamar a polícia se fosse necessário. No final, ele acabou pagando. Devia ser alguém inexperiente que não sabia quem estava contratando. Essa situação acabou sendo bem engraçada.
20) RM: O que lhe deixa mais feliz e mais triste na carreira musical e acadêmica?
Tuti Fornari: Atualmente, não tenho mais uma carreira musical, mas sou muito feliz e grato pela minha carreira acadêmica. Para o meu perfil de personalidade, não poderia ter escolhido outra coisa. Quando trabalhei no Vale do Silício como engenheiro de áudio, ganhando bem, percebi que não era aquilo que realmente queria. Talvez pudesse haver um salário mais equiparado com o mercado na carreira acadêmica, mas eu não posso reclamar.
Durante meus anos como músico, especialmente na faixa dos vinte e poucos anos, houve bons momentos. Mas a rotina de músico é desgastante. É bastante desagradável viajar o tempo todo estando em um relacionamento ou tendo filhos.
21) RM: Quais os estudos técnicos para o pianista ou tecladista desenvolver a independências das mãos?
Tuti Fornari: Como eu falei, existe um talento musical, e quanto mais velho eu fico mais eu acredito nisso. Recentemente, um professor de educação musical me alertou para o fato de que eu não deveria afirmar isso, pois muitos alimentam a esperança de que podem treinar e alcançar o nível dos grandes. Porém, eu realmente acredito que quem tem talento já nasce com ele.
Um exemplo claro é o Nelson Freire, que, com apenas 3 ou 4 anos de idade, tocava piano sentado no banco, com os pés longe do chão. Existe um limite para o talento musical de cada pessoa. Estudando e treinando música, eu reconheci o limite do meu talento, mesmo sendo conhecido como um dos melhores pianistas.
Eu era bom, mas não possuía o talento musical necessário para me tornar um pianista como Chick Corea, Harvey Henkel, Gilson Peranzzetta e César Camargo. É uma situação semelhante à de alguém que não tem talento para fisiculturismo e tenta usar anabolizantes para alcançar o mesmo nível de bodybuilders.
Aqueles que têm a quantidade necessária de fibras musculares, como Arnold Schwarzenegger, conseguem brilhar ao treinarem e usarem anabolizantes. O mesmo ocorre na música. Quando Hélio Delmiro foi gravar “Samambaia” com César Camargo Mariano, eles gravaram o LP no mesmo dia. Claro, tocaram várias vezes e editaram, mas a essência foi capturada de primeira.
Um amigo violonista conheceu Hélio e fez uma pergunta semelhante sobre técnicas. Surpreendentemente, Hélio não tinha uma resposta, provavelmente porque ele não se preocupava com isso. Meu amigo comentou que estava praticando algumas técnicas, e a resposta inusitada de Hélio foi: “mal não faz”.
É essencial entender que cada um possui seu limite em termos de dom musical, ao invés de sofrer com expectativas irreais. A música deve ser usada para seu propósito verdadeiro, que é social e comunal, não uma competição.
Quando quis aprender a tocar violão, comecei em um grupo, sabendo apenas alguns acordes. Era tão bom tocar sem a pressão de ser o melhor; eu estava simplesmente me divertindo. Aquilo era mágico, as horas passavam como minutos. Acho que o verdadeiro propósito da música é a comunhão, não o exibicionismo.
Como canhoto, desenvolvi habilidades técnicas que permitiram fazer coisas incríveis que muitas pessoas destras não conseguem. No entanto, isso se torna um beco sem saída, semelhante ao desafio de subir em um pau-de-sebo nas festas juninas, onde a prenda está no topo de uma tora de eucalipto. Mesmo que alguém consiga subir, sempre haverá um limite.
22) RM: Quais os estudos técnicos para o desenvolvimento da técnica das “três mãos” mão esquerda fazendo a linha do Baixo, a mão direita fazendo acordes e melodia?
Tuti Fornari: Essa técnica é conhecida como stride style, muito popular nos anos 40 nos Estados Unidos. No stride, a mão esquerda toca a linha de baixo e os acordes alternadamente, enquanto a mão direita executa a melodia e os acordes em bloco. Quando você domina essa técnica, o piano soa como uma big band. Não há um estudo técnico específico.
A melhor maneira de aprender é ouvir músicos que executam bem essa técnica e praticar bastante. Se você realmente gosta, vai acabar ouvindo muito e tocando frequentemente. Como sou canhoto, não tive dificuldades em executar bem o stride. No entanto, enfrentei mais desafios com a mão direita ao fazer solos e improvisos.
23) RM: Qual a importância dos estudos produzidos pela área da Musicologia atualmente?
Tuti Fornari: A musicologia abrange três áreas principais. O que normalmente entendemos como musicologia é a História da Música, que analisa o desenvolvimento da música erudita europeia através das partituras. Com o advento da gravação sonora, surgiu a Etnomusicologia, que estuda a música folclórica e as questões socioculturais que a envolvem.
Mais recentemente, com os avanços da neurociência, temos a Musicologia Sistemática, que se dedica ao estudo científico dos processos musicais em geral, abrangendo aspectos como escuta, performance, composição e regulação emocional. Embora muitos possam discordar, acredito que a Musicologia Sistemática é a mais significativa.
Sua importância reside em nos ajudar a entender a nós mesmos, em linha com a máxima socrática. É através dessa área que podemos explorar as regiões límbicas do cérebro, que são anteriores à razão e fundamentais para a expressão musical. Por isso, muitos estudos em Musicologia Sistemática, como os livros e artigos de David Huron, embora focados na música, tratam, na verdade, da condição humana.
24) RM: O que você diz para alguém que quer trilhar uma carreira musical?
Tuti Fornari: Aconselho que faça. Tem um episódio da série “Louie”, do Louis C.K., em que um comediante iniciante, que o protagonista considera péssimo, pede desesperadamente conselhos para melhorar. Depois de muita insistência, Louie diz que, apesar de não ser seu estilo, ele sugere que o rapaz pare de tentar ser comediante, pois realmente não tem talento para isso.
O jovem responde que não pode fazer isso, que a comédia é sua vida. Então, Louie o aconselha a fazer a mesma rotina, mas com uma voz engraçada. Após alguns dias, Louie o vê em um programa de televisão brilhando com essa abordagem. Inicialmente, fica surpreso, mas depois sorri.
Embora seja uma obra de ficção, essa história ilustra bem a imprevisibilidade da vida e como não podemos dizer quem terá sucesso. Para quem está perseguindo uma carreira musical, o importante é tentar e, se for para ser, o sucesso virá. Às vezes, como foi o meu caso, a música pode deixar de ser algo central na vida.
Para mim, entender a música de forma mais profunda veio quando comecei a estudar o que compõe essa comunicação sonora — essa proto-linguagem — a partir da musicologia sistemática. É como ir a um show de mágica: ao conhecer os truques, a magia perde um pouco do seu mistério. Depois de entender a música, percebi que ela não carregava mais o mesmo encanto.
25) RM: Quais os Pianistas e Tecladistas que você admira?
Tuti Fornari: Entre os tecladistas, admiro Chick Corea e George Duke, especialmente pelo seu estilo de jazz rock, que eu apreciava até mais do que o de Chick. No que diz respeito aos pianistas, Oscar Peterson é meu favorito, seguido por Art Tatum, cuja habilidade e expressividade sempre me impressionaram. Bill Evans também ocupa um lugar especial na minha lista, sendo uma referência importante na música.
26) RM: Quais os compositores eruditos que você admira?
Tuti Fornari: Admiro muitos compositores, especialmente os russos, como Stravinsky, Shostakovich, Rimsky-Korsakov, Rachmaninoff e Tchaikovsky. A mistura entre o Oriente e o Ocidente na música erudita russa sempre me fascinou.
Além disso, tenho grande apreço por Debussy, Beethoven, e, é claro, Bach, que é um gênio incontestável. Mozart e Chopin também são fundamentais — como podemos pensar em piano sem Chopin? Liszt, com seus estudos transcendentais, também me inspira, assim como Wagner, especialmente com “Tristão e Isolda”, que representa, supostamente, o fim do tonalismo. Existem muitos outros que eu devo estar esquecendo que são dignos de menção.
27) RM: Quais os compositores populares que você admira?
Tuti Fornari: Em primeiro lugar, admiro Chico Buarque. Também sou fã de Tom Jobim, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que têm obras belíssimas. Luís Tatit, do Grupo Rumo, é outro que aprecio, trazendo uma abordagem interessante, embora muitas de suas músicas tenham um tom cômico, com características de bufão ou menestrel.
Apesar de gostar muito de humor, acredito que é desafiador criar uma música realmente boa com essa temática. O humor na música é raso, pois depende da surpresa. Por exemplo, em “Premeditando o Breque”, a primeira vez é divertido, mas com o tempo se torna cansativo. A música é mais do que isso; é uma construção arquitetônica sonora que podemos revisitar. Cada nova audição revela detalhes e nuances que nos entretêm de maneiras diferentes. É essa profundidade que torna a música tão rica que normalmente não ocorre nas músicas cômicas.
28) RM: Quais os compositores da Bossa Nova que você admira?
Tuti Fornari: Falando em termos estritos da Bossa Nova (excluindo outras formas de MPB), admiro muito Tom Jobim, que é meu favorito. João Gilberto, Carlos Lyra e Roberto Menescal também contribuíram com excelentes composições. Além deles, Vinicius de Moraes é uma referência fundamental, não apenas como letrista, mas também como poeta e patrono da Bossa Nova.
29) RM: Quais os compositores do Jazz que você admira?
Tuti Fornari: Apesar de gostar bastante de Oscar Peterson, suas composições pessoais não me fascinam tanto. George Gershwin é um grande expoente que admiro, e acho as canções de Cole Porter excepcionais.
30) RM: Apresente sua linha de pesquisa como orientador de mestrado e doutorado.
Tuti Fornari: Minha linha de pesquisa se concentra na intersecção entre três áreas: música, cognição musical e tecnologia musical. Com formação em engenharia elétrica, desenvolvi uma forte conexão com a tecnologia aplicada à música. Além disso, realizei meu último pós-doutorado em psicologia musical, explorando aspectos de cognição musical e neurociência.
31) RM: O que fazer para que os projetos de pesquisas das universidades cheguem ao conhecimento e auxiliem o profissional da música?
Tuti Fornari: Para que os projetos de pesquisa se tornem mais acessíveis e impactantes, é fundamental que sejam escritos em inglês, ampliando sua visibilidade internacional. Além disso, existem questões políticas que muitas vezes influenciam a forma como essas pesquisas são percebidas e valorizadas.
É importante estar inserido em grupos que reconheçam e contribuam com seu trabalho, já que a política, mesmo em seu aspecto negativo, é uma característica intrínseca à dinâmica humana. Assim, se você não estiver alinhado politicamente dentro de um grupo, a chance de seu trabalho ser ignorado, mesmo que relevante, é alta.
É crucial ouvir os revisores e estar aberto às suas críticas e sugestões, sem entrar em conflito com eles. Quando um revisor sugere algo, é importante agradecer e tentar implementar as sugestões. Mesmo assim, se não houver um alinhamento político, pode ser difícil obter reconhecimento; como disse um físico famoso “não há nada científico na comunidade científica”. Portanto, a habilidade de fazer alianças e separar comentários que têm um caráter político daqueles que são realmente significativos é essencial para garantir uma abordagem polida e produtiva.
32) RM: Quais as principais diferenças entre as técnicas de Piano e Teclado?
Tuti Fornari: Uma das principais diferenças é que o teclado não produz vibração ao tocar uma nota, a menos que se trate de um Teclado semi-profissional ou caseiro com saída de som. Mesmo nesses casos, a experiência é diferente: no piano, as cordas vibram e criam um som rico e ressonante. Por isso, muitos pianistas dizem que tocar um Teclado pode parecer como tocar um “Piano morto”, já que não há essa sensação de vibração.
Por outro lado, os Teclados oferecem uma variedade de controles que um Piano não possui. Por exemplo, o after-touch permite que você pressione a tecla novamente após tocá-la, possibilitando modulações sonoras. Além disso, recursos como bender, modulation e vibrações proporcionam uma gama de efeitos que enriquecem a execução. Outra diferença significativa é o peso: os Teclados são geralmente mais leves que os Pianos.
33) RM: Quais as principais técnicas que o aluno deve dominar para se tornar um bom Pianista/Tecladista?
Tuti Fornari: Uma das técnicas mais importantes é a clareza na execução. Assim como na fala, é fundamental que o aluno busque uma boa “dicção” musical, ou seja, deve trabalhar para que cada nota seja claramente audível e bem definida. Isso envolve o fraseado: é essencial que as frases musicais sejam articuladas de forma a permitir que todas as notas se destaquem.
Uma estratégia eficaz para aprimorar essa clareza é gravar as próprias performances e ouvir as gravações posteriormente. No início, essa prática pode ser desconfortável, semelhante a ouvir a própria voz pela primeira vez. É normal achar horrível nas primeiras audições, mas com o tempo, você começa a desenvolver um feedback valioso sobre sua execução.
Essa habilidade de avaliar o próprio som é incrível, pois permite que você saiba como suas notas e frases soam ao público. Tanto é que os músicos, depois de gravarem álbuns, costumam melhorar de qualidade.
34) RM: Qual a importância dos conhecimentos tecnológicos para o Tecladista?
Tuti Fornari: Ter conhecimentos tecnológicos é tão importante para um tecladista quanto ter noções de mecânica é para um motorista. Se você entende um pouco sobre tecnologia, tem uma vantagem, pois pode resolver problemas simples ou, pelo menos, não ser tão enganado pelo próximo mecânico. Isso não significa que você vai tocar melhor, mas conhecimento nunca é demais.
É fundamental esclarecer que conhecimento tecnológico não se resume apenas ao uso de ferramentas. Existe uma diferença significativa entre o conhecimento prático do usuário e o conhecimento de um desenvolvedor.
Enquanto um tecladista pode se beneficiar de saber utilizar softwares e equipamentos, é um conhecimento bastante diferente o de um desenvolvedor que compreende a complexidade que está por trás da tecnologia, como a programação que transforma um código em um software funcional.
35) RM: Você é adepto ao uso de VST e VSTI?
Tuti Fornari: Sim, especialmente durante a gravação dos meus três álbuns (“Saudobra”, “Novina”, “Acalanto”). Utilizei VSTs para realizar equalizações e tratamentos de áudio, aproveitando ao máximo as possibilidades que esses plugins oferecem. Os VSTs são pequenos executáveis que se integram a plataformas maiores, como DAWs, e os VSTIs são especificamente instrumentos virtuais. Não tenho nada contra eles.
36) RM: Quais os principais vícios e erros que devem ser evitados pelo aluno de Piano/Teclado?
Tuti Fornari: Existem muitos vícios que os alunos podem desenvolver, e todos podem ser minimizados — embora não necessariamente dirimidos— por meio do processo de tocar, gravar e ouvir suas próprias performances. Infelizmente, a maioria dos músicos reluta em fazer isso, assim como alguém que tem problemas psicológicos pode hesitar em buscar tratamento.
Como músico, é realmente desconfortável ouvir sua própria performance, muitas vezes pode ser doloroso. No entanto, essa prática é uma das melhores maneiras de identificar e corrigir erros.
Por isso eu havia dito que os músicos que fazem álbuns tendem a melhorar sua musicalidade. Ao escutar a si mesmo, você se torna mais consciente das suas falhas e vícios e passa a aprimorar sua técnica e estilo.
37) RM: Quais os principais erros na metodologia de ensino de música?
Tuti Fornari: Um dos principais erros na metodologia de ensino de música é inverter a ordem dos fatores. A música não é linguagem, mas é também uma forma de comunicação sonora. Enquanto, a linguagem é predominantemente semântica, a música é predominantemente expressiva.
O principal erro de metodologia na música é começar aprendendo a “gramática” (a teoria e técnica musical) para depois aprender a se expressar. No aprendizado natural da linguagem, nós primeiramente aprendemos a falar e, só depois, aprendemos a gramática e suas irregularidades.
Essa ideia se alinha ao método Suzuki (https://carolmixa.webnode.page/metodo-suzuki-de-1-a-10), que propõe que as crianças aprendam a tocar os instrumentos antes de se aprofundarem na teoria. Portanto, um dos grandes erros na metodologia de ensino de música é negligenciar essa sequência natural de aprendizado de uma forma de comunicação sonora.
38) RM: Existe o Dom musical? Como você define o Dom musical?
Tuti Fornari: Sim, acredito que o dom musical existe e pode ser entendido como uma habilidade inata, assim como ter uma altura específica na vida adulta ou uma certa cor de olhos. Assim como outras capacidades naturais, o dom musical pode ser aprimorado e desenvolvido ao longo do tempo (como quem se alimenta melhor na infância, costuma crescer mais).
Eu vejo pelo menos dois tipos de dom musical. O primeiro é o dom técnico: é aquele músico que lê uma partitura com facilidade, que consegue ouvir uma nota e identificar o tom. O segundo é o dom criativo, da improvisação e interpretação. Muitas vezes, esses dons se destacam de maneiras desiguais no mesmo indivíduo, e a maioria das pessoas tende a apresentar mais uma dessas habilidades em detrimento da outra.
Pessoalmente, sinto que tenho um dom bem maior para improvisação e interpretação do que para a leitura à primeira vista. Existem, claro, alguns raros artistas que possuem ambas as competências em alto tom. Apesar de acreditar que existem outros dons musicais, eu diria que essas duas habilidades são as mais marcantes.
39) RM: Quais os prós e contras dos métodos sobre Improvisação musical?
Tuti Fornari: Os métodos de improvisação tonal estão intimamente ligados a gêneros musicais, estilos de artistas específicos e à linguagem materna do músico. Por exemplo, ao ouvir uma improvisação de jazz em francês, como as de Grappelli ou Django Reinhardt, percebemos uma pontuação e regularidade que se assemelham à fonética do francês falado. Da mesma forma, as improvisações de jazz americano apresentam variações de altura musical características do inglês falado.
Isso também se aplica a estilos como o Samba, onde o som do pandeiro possui uma rítmica similar à do português brasileiro falado. Os prós e contras desses métodos incluem a falta de consideração pela relação entre improvisação e a linguagem nativa do músico.
Crescendo em uma determinada região, desenvolvemos um sotaque que se manifesta na forma como nos expressamos musicalmente. Se alguém de outra região tentar imitar o sotaque de um nativo, pode não soar autêntico e ser até irritante. Portanto, é mais eficiente e inteligente improvisar dentro de seu próprio “sotaque” musical.
40) RM: Qual a definição de Improvisação para você?
Tuti Fornari: Improvisação é um ato de entrega e disponibilidade, para que algo especial ou mágico ocorra. O diretor Federico Fellini dizia que, quando iniciava a produção de um novo filme, nas primeiras semanas era ele quem dirigia o filme. Depois disso, era o filme que dirigia ele.
Obras seminais de Fellini, como o filme “Oito e Meio” nem sequer tinham um roteiro definido, apenas uma ideia inicial. Diziam que o cinema de Fellini era improvisado. Ele, no entanto, acreditava que era fundamental se permitir ser um canal de algo mágico que estava por vir através dele, abordando este misterioso processo com respeito, seriedade e reverência, e não com leviandade, escárnio ou deboche.
Esse tipo de descaso é muitas vezes utilizado por músicos como forma de defesa contra a indiferença ou crítica da plateia, porém depõe contra seu próprio processo criativo. Se um músico se coloca à disposição para que algo extraordinário aconteça, é bem mais provável que isso se concretize.
Fellini não gostava do termo “improvisação”, pois o associava a algo remendado, mambembe. Ele preferia o termo “disponibilização”, que enfatiza a ideia de estar plenamente presente no momento do processo e aberto ao ritual de sua criação. Levar esse ritual a sério, ao se colocar à sua disposição, é essencial para tornar a improvisação uma experiência mais profunda, expressiva e significativa para a audiência.
41) RM: Existe improvisação de fato, ou é algo estudado antes e aplicado depois?
Tuti Fornari: A improvisação, em sua essência, é um processo que parece envolver tanto elementos espontâneos quanto padrões aprendidos de experiências prévias. Podemos pensar, por exemplo, em escolher um número aleatório entre 1 e 100. É difícil acreditar que essa escolha não esteja, de alguma forma, ligada a associações psicológicas que influenciam a decisão.
Quando um músico improvisa, ele não cria a partir do nada; sua bagagem musical e suas associações influenciam inevitavelmente suas escolhas. As improvisações realmente existem, mas os padrões, frases e prosódias que compõem a expressão musical de cada gênero desempenham um papel crucial na performance.
A verdadeira dificuldade está em criar um discurso musical coeso — algo que comece em um ponto, se desenvolva e chegue a uma conclusão. Essa habilidade é rara e, quando encontramos um músico que a possui ou a desenvolveu, percebemos que sua improvisação é muito melhor pois tem contexto.
42) RM: Quais os prós e contras dos métodos sobre o Estudo de Harmonia Funcional?
Tuti Fornari: Quando estudei Harmonia Funcional, achei bastante lógica e eficaz. A Harmonia Funcional estabelece relações entre acordes e cadências que descendem dos estudos de Pitágoras, em especial a série harmônica e o ciclo das quintas, o que incorre na formação das escalas diatônicas, seus modos e nos acordes e suas tensões.
Tudo isso está interligado por uma hierarquia que nos ajuda a entender a distância musical: por exemplo, de dó a dó sustenido (1 semitom) é musicalmente muito mais distante do que de dó a sol (7 semitons). Essa compreensão psico-acústica é crucial, já que tocar dó com dó sustenido resulta em uma dissonância significativa devido à distância perceptual intervalar dada pela série harmônica.
Evidentemente, como qualquer modelo, este também funciona até certo ponto. Geralmente, quando se estabelece uma formalização na música, surgem composições interessantes que quebram as regras musicais previamente estabelecidas.
Isso acontece porque nosso cérebro é instigado a detectar os padrões subjacentes e a antecipar padrões futuros, e quando uma música é composta de acordo com um conjunto de regras formais, ela possui a vantagem de instigar a expectativa do público a decifrar seus padrões.
43) RM: Quais os prós e contras de ser multi-instrumentista?
Tuti Fornari: Os contras de ser multi-instrumentista, se é que podemos chamá-los assim, incluem o risco de não se desenvolver plenamente em um único instrumento. No entanto, eu vejo isso como um pró, já que dedicar-se todos os dias ao mesmo instrumento pode se tornar monótono.
Se começam a surgir oportunidades de recitais e apresentações, então é positivo, mas se você pratica por um bom tempo e nada acontece, você pode começar a se questionar sobre o porquê de estar fazendo aquilo.
Por outro lado, ser multi-instrumentista traz uma série de vantagens. Um dos principais benefícios é a capacidade de entender diferentes mapeamentos musicais. Por exemplo, ao aprender a tocar violão, eu que era pianista ganhei uma nova perspectiva sobre toda a Bossa Nova, que foi construída praticamente em torno do modo de tocar esse instrumento.
Ao fazer uma pestana no violão, por exemplo, tudo se alinha para expressar uma sonoridade característica da música brasileira. No piano, essa construção é mais distante; a tendência é criar acordes em terças, ao invés das quartas que surgem da afinação do violão.
Além disso, assim como um poliglota que compreende diferentes formas de pensar, um multi-instrumentista amplia seu potencial criativo e intelectual por navegar em diferentes “idiomas” representados por diferentes instrumentos. Cada instrumento oferece uma nova maneira de expressar ideias musicais, o que pode enriquecer, não apenas a técnica, mas também a própria compreensão da música como um todo.
44) RM: Quais os seus projetos futuros?
Tuti Fornari: Meu projeto futuro na música se concentra no artivismo, que é a intersecção entre arte e ativismo. Estou focado em abordar questões socioambientais por meio da arte sonora computacional. Prefiro não chamar isso de música, porque não quero vender “gato por lebre”.
Se eu disser que é música, as pessoas podem esperar algo mais tradicional, tonal, rítmico, e se frustrarem ao se depararem com o que provavelmente entenderiam como uma série de ruídos. A ideia é utilizar a música e outras artes sonoras afins como uma forma de persuasão expressiva, não doutrinária, apresentando alternativas à problemática ambiental sem um teor discursivo e panfletário.
A persuasão através da arte não semântica pode ser mais eficaz do que o ativismo tradicional, com passeatas e gritos de protestos, como sugere a literatura recente. Essa abordagem de certo modo, se aproxima das parábolas que Jesus contava, que tinham o objetivo de suscitar uma reflexão moral sem impor preceitos éticos. Nesse sentido, meu projeto futuro é a produção de arte sonora computacional artivista.
45) RM: Quais seus contatos para show e para os fãs?
Tuti Fornari: https://sites.google.com/site/tutifornari
| [email protected], e estou disponível para conversas e colaborações.
| https://www.instagram.com/tutifornari
Saudobra: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kK7OVhHfx93Ar4spcKsY-Qt4m2lJUH0c4
Novina: https://youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_midnBAW_uIBYCIsvbZsnoZP808Kh2O4q4&si=WS68A5XCWWMFEZr7
Acalanto: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nKObbMtdWPdT0sLvaHJOVsIwL3bDKS1Z0
Todas as músicas destes 3 álbuns estão disponíveis integralmente no link: https://www.youtube.com/channel/UCUgmlpQEk6IP82ILy29deew
Minha tese de doutorado está disponível em: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2003.299815
Outras produções acadêmicas minhas (como autor, coautor, orientador, etc) podem ser encontradas no link: https://repositorio.unicamp.br/Resultado/Listar?guid=1727694728510
Livro: https://editoraunicamp.com.br/catalogo/?id=1882
https://www.researchgate.net/publication/234046569_Percepcao_Cognicao_e_Afeto_Musical
https://www.researchgate.net/profile/Jose_Fornari
https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/33857/jose-eduardo-fornari-novo-junior
https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/posts-anteriores
Quanta erudição do entrevistado! Amei a parte do artista ser intuitivo e permitir que a resposta se revele por si mesma. Ótima entrevista!