Rainer Miranda é violeiro autodidata e antropólogo. Atua na promoção da viola de dez cordas como instrumento de pontes culturais, produzindo conteúdos artísticos e acadêmicos em torno da viola como veículo da música modal.
Possui cinco álbuns gravados: um com o duo TrêsCordas (TrêsCordas, 2015), outro com o duo AL’GAZARR (SONIDOS TRADICIONAES DE LVGAR NINGUNO, 2015) e três com seu projeto solo de narrativas instrumentais, o ÁSPERO (Queda & Regresso, 2014; Duas Derradeiras, 2017; A Casa de Héstia, 2020).
Desenvolve como docente da Universidade Federal do Vale do São Francisco, no campus Serra da Capivara, o projeto de extensão para ensino e fomento da viola de dez cordas no semiárido piauiense, o VÁRIA – artes e violas na caatinga.
Segue abaixo entrevista exclusiva com Rainer Miranda para a www.ritmomelodia.mus.br, entrevistado por Antonio Carlos da Fonseca Barbosa em 06.04.2021:
01) Ritmo Melodia: Qual a sua data de nascimento e a sua cidade natal?
Rainer Miranda: Nasci no dia 02 de fevereiro de 1990 em Votorantim, interior de São Paulo; radicado em São Raimundo Nonato, no semiárido do Piauí. Registrado como Rainer Miranda Brito.
02) RM: Fale do seu primeiro contato com a música.
Rainer Miranda: Foi em casa, ouvindo fitas K7 antigas, discos de vinil, cds e um pouco de rádio. Meus pais sempre tiveram o hábito de ouvir música e pude ouvir muita música instrumental em casa, música andina, orquestras de música regional, alguma coisa de música erudita mais conhecida. Também tive meu avô Benedito Messias Brito por perto, um violonista da música caipira e um divertido contador de causos. Uma parte mágica de minha infância foi ouvi-lo tocar e presenciar as rezas que aconteciam na casa dos meus avós, sempre tinha um pouco de música por perto.
03) RM: Qual sua formação musical e/ou acadêmica fora da área musical?
Rainer Miranda: Não possuo formação musical oficial. Cogitei, na adolescência, buscar um caminho acadêmico de formação musical, mas minha curiosidade por culturas musicais não ocidentais me afastou desse caminho. Acho que a viola, que apareceu cedo na minha vida, provocou um desvio de formação interessante para minha curiosidade musical. Enveredei assim para as Ciências Sociais e depois para a Antropologia. Sou graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Antropologia pela UFSCar. Sou um violeiro que se tornou, por acaso da vida, antropólogo e professor; sou hoje docente da UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco), campus Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí.
04) RM: Quais as suas influências musicais no passado e no presente. Quais deixaram de ter importância?
Rainer Miranda: Minha infância foi marcada por muita música instrumental Andina e latino-americana; que era popular e de fácil acesso. Encontrava-se CDs e artistas pelas ruas e pequenas lojas de música da região. Ainda criança pude ouvir discos de grupos como Los Jairas (Ernesto Cavour, Alfredo Dominguez, Gilbert Favre), eu adorava esse tipo de música. Gostava também muito de Heavy Metal e da música campesina sul americana, eu achava que eram gêneros muito compatíveis. Naquele momento eu ouvia muito Helena Meirelles, Cenair Maicá, Noel Guarany, Jorge Cafrune, Mercedes Sosa, Alfedo Zitarrosa, Eduardo Falú e bandas como Devil Doll, Arcturus, Candlemass, Darkthrone.
Na adolescência, graças ao acesso à internet, aproximei-me da “música étnica” (ou “world music”) e me apaixonei pela reconstrução e imaginação musical fora da Europa e da América europeia. Nesse momento minhas ideias e inquietações como violeiro caminharam para pontes com outras culturas musicais. Mergulhei na música persa e consequentemente conheci um pouco de música do mundo árabe e do mundo hindu. Mestres como Mohammed Reza Lofti, Mohammad-reza Shajarian e Parissa abriram um caminho definitivo para minha incursão na música Persa. E assim vieram Ostad Elahi, Parvis Meshkatian, Hossein Alizadeh, Sahba Motallebi e tantos mais. Essa incursão se tornou um centro de gravidade musical do que gosto e preciso escutar de tempos em tempos, selando um “pacto” da minha imaginação e prática musical com a música modal. A música descomprometida, no bom sentido, com o desenvolvimento da harmonia e da tonalidade.
Esse “pacto” também me fez aproveitar muito mais a música nordestina que me constituía como violeiro: João do Vale, João Bá, alguma coisa da Orquestra Armorial, as trilhas sonoras de Glauber Rocha com Sérgio Ricardo. Meio a tudo isso tive o privilégio de conviver e conhecer grandes violeiros e violeiras, cantadores e contadoras que se misturam em um elo de amizade e influência, tanta gente que acho melhor não citar nominalmente para não esquecer de alguém.
05) RM: Quando, como e onde você começou sua carreira musical?
Rainer Miranda: Às vezes acho que não tenho exatamente uma carreira musical. Acredito que talvez eu tenha um caminho sobre como a viola veio participar da minha vida para experimentar música. A viola apareceu aos meus treze anos de idade, em casa. Eu quase comecei a tocar guitarra por causa de algumas das bandas que eu gostava na época, mas eu havia chegado à conclusão que era mais interessante tocar viola. Eu não tinha interesse na música da viola caipira e nem na figura ou na performance das bandas de Heavy Metal, achava que nos dois casos tudo era muito previsível, muita performance e imagem para pouca música.
No caso da música da viola caipira o que também me desagradava era que sempre se tocava músicas com a mesma lírica e intenção de “Saudade da minha terra” ou de “Boate azul”. E quando era instrumental eram os solos de pagodes de viola cujas letras estavam recheadas de ostentação da “macheza”, das brigas dos mais “fortes”, do valentão e sobre ter “sucesso” e “mais fama que os inimigos”, etc. Para mim isso exaltava bairrismo, saudosismo e traços de um autoritarismo “cultural”, coisas muito ruins da nossa história e do nosso cotidiano.
Minha aparição pública com a viola foi por acaso. Com meus dezesseis anos, tocando viola em alguns lugares em Votorantim – SP conheci um grupo de violas na cidade, na época era a Orquestra de Viola Caipira de Votorantim, cujo responsável pela condução e organização era o violeiro Ricardo Anastácio. Tinha muitos violeiros e violeiras da cidade e de cidades vizinhas tocando neste grupo. Apesar de não simpatizar tanto com o repertório da viola caipira, e tampouco com a ideia de viola caipira, passei a participar de alguns encontros para tocar com as pessoas e tirar a viola de casa. Embora eu não tenha sido um membro assíduo do grupo, fui bem recebido e cultivei amizades e conheci ali muito do repertório da música caipira; coisa que só via e ouvia meu avô tocar e meu pai Ercílio Aparecido Brito escutar em casa.
Meu jeito de pensar e tocar viola era incomum (estranho, melhor dizendo): tocando com palheta e afinando a viola em realejo (uma afinação pouco utilizada e com uma sonoridade bastante ressonante). Não havia passado por outro instrumento, nem mesmo pela viola com afinação em cebolão. Eu usava palhetas com formatos diferentes (às vezes de lascas de chifre, às vezes pedaços de plástico de embalagens vazias, etc) e não tinha qualquer ideia de técnicas de palhetada de guitarra, cavaquinho ou de outros instrumentos. Eu era um violeiro iniciante sem professor e levava tudo como uma experimentação. Penso que era meio estranho ver e ouvir eu tocando no começo, mas eu realmente achava toda aquela experimentação inspiradora; era uma jornada de descobertas extraordinárias para mim. Eu era um alienígena muito inconveniente e teimoso.
Pois bem, eu não sei narrar o que aconteceu exatamente, mas de repente eu estava tocando pelos interiores de São Paulo, com meus 18 anos, em SESCs e festas incríveis como o Caipirapuru tendo como parceiros de palco e amigos de roda de viola gente tão querida como Julio Santin, Levi Ramiro, Zeca Collares, Milton Araújo, Katya Teixeira, Luciano Queiroz, Rogério Gulin, Marcos Azevedo, para citar alguns. Eu fui inserido, graças a generosidade de artistas que passaram por Votorantim nas Violeiras (eventos da cidade que envolviam a música de viola e tinham participação ativa da Orquestra de Viola Caipira de Votorantim) em “caravanas” de música de viola instrumental que me acolheram.
Eu surgi neste cenário de música de viola instrumental tocando uma viola dinâmica afinada nas três cordas (rio abaixo em Lá maior), tocando temas inspirados pelas técnicas e pelo tipo de música que tocava dona Helena Meirelles. Recebi um reconhecimento inesperado como um dos “herdeiros do estilo de viola de dona Helena Meirelles“; diziam que os últimos desse estilo eram Milton Araújo e Rainer Miranda. Não era esse tipo de viola e técnica o meu jeito de tocar e pensar a viola, não era minha atividade de violeiro autoral. Mas foi algo que cresceu e aconteceu repentinamente, abriu muitos caminhos e impulsionou meu breve período de violeiro profissional. O que para mim, “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”, era incrível.
Minha viola autoral, aquela afinada em realejo, demoraria a aparecer em público. Era muito difícil torná-la pública devido ao seu caráter obscuro e também pelo fato de eu ser um violeiro jovem e estranho: músicas longas, sem padrão rítmico bem definido, uma viola suja, muitas melodias estranhas para os ambientes de música de viola — estes sempre ávidos pelo discurso e pelo som da “viola caipira”. Todas as vezes que eu tentei fazer um show, uma apresentação com minha viola autoral, afinada em realejo, fracassei. As apresentações aceitas sempre desembocavam na viola “tipo da dona Helena“. Isso às vezes isso me angustiava porque minha concepção autoral de viola em realejo não tinha sequer uma pequena parte das oportunidades que a outra viola, a parecida com a dona Helena, tinha.
Pois bem, dei o nome dessa empreitada da viola autoral em realejo de ÁSPERO. Inicialmente, devido à dificuldade de publicização do projeto, ele nasceu como um projeto anônimo em 2010. Eu gravava e soltava músicas na internet, queimava discos em casa e mandava para revistas e pequenos sites de música independente sem assinar a autoria, deixando o mínimo de rastro possível. Consegui com isso algum sucesso anônimo em fóruns de música experimental e muitos rumores sobre quem seria o responsável pelo ÁSPERO. Em 2019 resolvi assumir a autoria do ÁSPERO como meu projeto de viola autoral e… aqui estou. A viola em realejo assumiu enfim o lugar de frente da minha vida musical tanto como ferramenta artística autoral quanto como fonte de pesquisa, ensino e divulgação de técnicas, repertório e pontes culturais em torno da viola de dez cordas.
06) RM: Quantos CDs lançados?
Rainer Miranda: Com o Duo TrêsCordas foi um álbum chamado “TrêsCordas”. É um álbum que representa bem minha atuação como violeiro dos toques inspirados em dona Helena Meirelles. O disco foi gravado em 2009, mas ficou engavetado durante alguns anos, lançado digitalmente em 2015. Os violões e contrabaixo foram tocados pelo meu parceiro de apresentações na época, Marcos Azevedo. Eu toquei a viola dinâmica afinada nas três cordas. O disco foi dirigido por Levi Ramiro e Julio Santin, sendo Julio o responsável pela gravação e mixagem do disco.
Em 2015, com o Duo AL’GAZARR um pequeno álbum chamado “SONIDOS TRADICONAES DE LVGAR NINGVNO”. O duo era com meu amigo desenhista e violonista, Fábio Martins, tocando violão e guitarrón e eu tocando viola, nessa ocasião utilizando a afinação Ré acima (ou Meia-guitarra).
Com o ÁSPERO foram seis álbuns, mas contabilizo apenas três devido ao caráter anônimo que o projeto tinha até alguns anos atrás. São “Queda & Regresso” de 2014, “Duas derradeiras” em 2017 e recentemente “A Casa de Héstia” em 2020. Todos de viola autoral solo, gravados e produzidos por mim, com exceção de “A Casa de Héstia” que foi masterizado pelo estúdio AIPIM.
07) RM: Como você se define como Violeiro?
Rainer Miranda: É difícil a gente ser o que imagina; já que a imagem menos realista de si é a autoimagem, não é? Correndo o risco eu me definiria como um violeiro modal, mergulhado em concepções de repetição e melodias soltas e longas. Um violeiro interessado nas pontes culturais que uma viola pode construir não apenas como instrumento musical local, mas como um veículo espiritual. No sentido forte, não religioso; para a experiência da música de gentes e povos reais ou imaginários deste mundo. Não acredito tanto na música como disciplina ou objeto social de performance, mas sim na música como espetáculo da imaginação. A viola é uma ótima perspectiva desse espetáculo.
08) RM: Quais afinações você usa na Viola?
Rainer Miranda: Dedico-me à realejo (par 1 ao par 5, de baixo para cima: Mi, Do, Sol, Do, Sol) e a uma variação da afinação realejo que não tem nome conhecido, mas a chamo de “sineta” (Mi, Do, Fá, Do, Fá/Dó). Toquei bastante com a três cordas (rio abaixo em Lá maior) quando tocava a viola dinâmica inspirada na dona Helena Meirelles e um também um período tocando em Ré acima (ou meia-guitarra: Ré, Si, Sol, Dó, Sol), mas não as utilizo mais.
09) RM: Quais as principais técnicas o violeiro tem que conhecer?
Rainer Miranda: Nos últimos tempos a viola no Brasil se resumiu, técnica e conceitualmente, a uma imagem de um tipo de viola em específico, a viola caipira; que apesar de congregar e fortalecer um contexto musical, histórico e cultural do sudeste e centro-oeste do Brasil. E, isso criou uma receita de como se deve tocar viola ou o que se deve/pode tocar na viola. Acredito que uma das coisas mais interessantes da viola é seu espírito plural, indomado: ela tem a força de colocar tudo em risco, tudo em dúvida. E nos últimos tempos a ideia geral de viola tem sido centralizada pela viola caipira e conduzida pela padronização de afinação e técnicas, emprestando sistematicamente técnicas e concepções do violão e da teoria musical canônica.
Tenho a impressão que esse processo acumula regras e intimida a imaginação. Parece uma pressão de dois lados: de um lado a postura conservadora da tradição (a “viola caipira” = música raiz) e por outro a “institucionalização musical” da viola como um simples instrumento musical, colocando-a em oceano de teorias e técnicas musicais canônicas. A musicologia ocidental é mestre em fazer isso: tornar os instrumentos apenas um suporte para que a teoria da música seja o primeiro plano.
Eu acho esses regramentos muito ruins para a viola; como instrumento popular ela tem potência para imaginação e transgressão. Eu responderia que uma violeira, um violeiro talvez devesse exercitar bastante sua imaginação, permitir-se desconhecer a música como “disciplina” e conhecer a viola antes como um veículo de viagem, um passaporte para uma aventura sem muitas previsões. E, se houver energia e disposição para tal, passear musical e intelectualmente longe de seu lugar e longe da teoria musical dominante. Acredito ser essa uma boa ideia de viola para se aventurar pela experiência musical.
10) RM: Quais os violeiros que você admira?
Rainer Miranda: Tem tanta gente boa tocando viola hoje em dia; prefiro não citar nominalmente para não esquecer de alguém. De violeiros antigos confesso que poucos me marcaram; mencionaria apenas a de Helena Meirelles, que era muito diferente do que havia como viola instrumental. Acredito que uma parte menos conhecida da chamada música regional brasileira, sobretudo aquela associada à atmosfera nordestina (dos baiões menores, dos rojões de viola, das trilhas sonoras), foram mais importantes para minha memória de viola do que muito do material feito e rotulado como “música de viola”.
11) RM: Como é seu processo de compor?
Rainer Miranda: É uma mistura entre escrever, desenhar e tocar viola. Eu não consigo criar nada à viola que não tenha uma história escrita, contos meio malucos que me vem no juízo, e um desenho que ligue a melodia à história que escrevi. Normalmente a história vem primeiro, eu a escrevo e em seguida vem a melodia e por último o desenho, mas às vezes vem tudo ao contrário. Tenho punhadinhos de histórias e desenhos, todos com melodias próprias. Gosto de chamar e pensar minha viola como uma viola de narrativas instrumentais. O ÁSPERO é justamente isso, um jeito de dar nome ao meu fazer música-com-viola contando histórias sem falar nada; é um projeto artístico de narrativas instrumentais de uma viola. Eu esqueço as melodias muito facilmente então escrevo as histórias e as visito com frequência porque lembro das melodias quando leio as histórias e vejo os desenhos. Os desenhos são bem simples, rabiscos de uma só cor, traços repetitivos formando alguma cena que possa sintetizar a história contada. Minhas melodias são longas, mais de dez minutos às vezes mais. Quando é hora, quando é para acontecer, eu sento com a viola, com a história por perto e algum esboço do desenho e pronto, é uma longa história tocada de uma vez só. É difícil planejar, simplesmente acontece; é coisa da viola e das histórias.
12) RM: Apresente seus projetos de pesquisas de mestrado e doutorado.
Rainer Miranda: A viola veio bem antes da universidade. Hoje, quando às vezes me sinto deslocado na academia ou mesmo nas discussões acadêmicas sobre “música”; seja na universidade ou em outras ocasiões, entendo que esse sentimento tem a haver com minha relação visceral com a viola, o resto veio depois. Não sou músico e como intelectual tenho planos e projetos acadêmicos muito colados à minha realidade; isso tem me levado cada vez mais para a extensão universitária do que para a pesquisa acadêmica tal como é costume fazer. Felizmente estou na universidade agora como professor, tenho a viola sempre por perto e posso tocá-la sem manter com ela um compromisso financeiro; o que antes de eu me tornar professor era um ponto crítico, como é para muitos artistas.
Minha graduação foi em Ciências Sociais, fiz uma pesquisa de monografia/iniciação científica sobre três padrões rítmicos importantes em alguns ambientes de performance de viola: a polca, o rasqueado e o chamamé. O título foi “O efeito de superfície: tecnicidade, compatibilidade e sociogênese entre a polca, o rasqueado e o chamamé”. Fiz pesquisa de campo aproveitando minhas viagens como violeiro entre cidades de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Conclui a graduação em 2012.
Minha dissertação de mestrado foi em Antropologia, o título é “O regime fabril-artesanal de violas paulistas”. Fiz uma pesquisa sobre a construção e a manutenção de violas no interior de São Paulo. A pesquisa focou a Viola Xadrez, localizada em Catanduva, SP. Fui muito bem recebido pelos irmãos Vieira, Eduardo e Renato, fiz bons amigos ali. Aprendi muito e me dediquei a descrever e compreender como a construção e manutenção dessas violas que passavam pela fabril-artesania da Viola Xadrez marcavam uma sensibilidade ímpar das ferramentas, instrumentos e materiais que ali estavam para dar vida a uma coisa tão especial: uma viola. Minha preocupação na dissertação foi manter a Viola Xadrez em contato com as discussões metodológicas e teóricas da Antropologia da técnica, dos estudos das técnicas nas Ciências Sociais. Conclui o mestrado em 2015.
Minha tese de doutorado foi em Antropologia e não teve relação com viola, o título é “Sobre o socius e as séries mecânicas”. Foi uma pesquisa histórico bibliográfica sobre o lugar das máquinas e dos mecanismos na teoria social do século XIX e XX. Conclui o doutorado em 2019.
Atualmente desenvolvo aqui em São Raimundo Nonato, Piauí, desde 2018 um projeto de extensão (faceta muito importante na universidade, creio que às vezes até mais do que a pesquisa) chamado VÁRIA – artes e violas na caatinga. Inicialmente era para ser um projeto pequeno, dar espaço para pequenos concertos de artistas do sudeste do Piauí relacionados à viola, ministrar oficinas gratuitas para as pessoas que quisessem aprender viola, bem como produzir conteúdo audiovisual para promoção da música “dos povos do mundo” que tenham alguma relação com a viola nordestina.
O projeto se tornou mais robusto do que o planejado e possibilitou que eu organizasse e publicasse anos de reflexão sobre a viola afinada em realejo como uma viola integrada à família das violas nordestinas — é assim que penso a viola em realejo, como uma viola nordestina. Através do VÁRIA fiz um material instrucional (um “método”, embora não goste do termo) para aprendizagem da viola em realejo como uma viola modal por excelência — uma viola com ênfase melódica, sem ênfase em harmonia ou estruturas tonais.
O material se chama Caderno de uma viola em realejo e foi publicado em junho de 2020. É um livro digital (ebook), gratuito e acessível. O material oferece uma concepção da viola em realejo como viola nordestina, exercícios e um pequeno repertório para a viola em realejo, com vídeos de referência e tablaturas interativas. É um material que não requer apurado conhecimento musical prévio e não tem pretensão de ser exaustivo e “definitivo” como a maioria dos métodos de viola. É o primeiro “método” de viola instrumental nordestina publicado até então — mas acredito que o material do Adelmo Arcoverde deve ser lançado em breve, será um momento importante para a viola instrumental nordestina.
Pelo VÁRIA também produzo programas de rádio chamados “radiofônicos” com músicas e pequenos textos autorais. Pelo VÁRIA consegui apoiar e provocar um movimento que chamamos, nós violeiros envolvidos, de um movimento da Viola Instrumental Nordestina. Conseguimos fazer a primeira Mostra de Viola Instrumental Nordestina, 100% online, totalmente independente, sem dinheiro ou incentivos. O evento aconteceu em novembro de 2020 e foi um marco para as violas instrumentais nordestinas; tudo discutido e pensado coletivamente. Eu usei o VÁRIA o máximo que pude para apoiar o evento e além de participar dele como violeiro, concentrei a parte burocrática e a edição audiovisual como trabalho do VÁRIA. Assim teríamos um apoio, embora pequeno e de mão de obra, de um projeto de extensão de uma universidade pública federal que está no interior do nordeste, a UNIVASF.
A mostra foi um sucesso e tivemos vídeos de performance dos violeiros e bate-papos sobre biografias, jeitos de tocar, etc. Participaram desta primeira Mostra: Adelmo Arcoverde (PE), Cassio Nobre (BA), Cristiano Oliveira (PB), Fernandinho Régis (RN), Gabriel Bedeza (PE), Julio Caldas (BA), Hugo Linns (PE), Igor Sá (PE), Keyller Almeida (PB/PE), Laís de Assis (PE), Leandro Drumond (MG/PB), Marcelo Othon (RN), Paulo Matricó (PE), Rainer Miranda (PI), Rodolfo Lopes (PB), Rodrigo Veras (PE).
Fico muito feliz que algo como o VÁRIA seja um projeto criado e desenvolvido no semiárido do Piauí, como iniciativa sediada em uma universidade pública de recursos escassos. Não há grandiosidade nisso, mas acredito que isso marca a universidade, além do jargão da pesquisa e do ensino, como um lugar de imaginação e promoção cultural. Claro que neste caso tem muito do meu trabalho, mas acredito que ainda assim é importante enfatizar que toda universidade pública pode ter esse papel cultural, embora seus recursos estejam cada vez menores.
13) RM: Quais os prós e contras de desenvolver uma carreira musical de forma independente?
Rainer Miranda: Acho que a maior dificuldade seja conciliar a qualidade e a sinceridade da expressão artística com a necessidade material de uma remuneração legal, para não viver sempre no sufoco. Para quem vive de arte esse é o maior desafio, especialmente em um país como o nosso, devastado pela avançadíssima indústria do gosto e do entretenimento que dominam e reconfiguram as mídias de amplo acesso para a maximização de seus ganhos — eles têm forte influência dos canais de distribuição de produtos, as plataformas de música, os streamings, etc. O desafio é a monocultura — que leva à tiracolo a ignorância, a ostentação e a competição. A vantagem acredito ser a liberdade criativa e a experiência intraduzível de poder fazer o que é preciso para se expressar artisticamente. Um caminho com muitas dúvidas e uma liberdade difícil de compreender e exercitar.
14) RM: Quais as estratégias de planejamento da sua carreira dentro e fora do palco?
Rainer Miranda: Meu planejamento é pequeno e solitário. Faço breves acordos comigo acerca de prazos para gravar, escrever, desenhar e tornar público os álbuns do ÁSPERO. O que tem demandado mais planejamento é meu trabalho na universidade, especialmente quando posso me envolver também como violeiro; preciso assim construir um cronograma para produzir e lançar o que for: livro, curso, gravação, etc. Tento não misturar muito os planos da/na universidade com a atuação do ÁSPERO, por possuírem tempos e ênfases diferentes. Na universidade, quando posso ser mais violeiro do que professor, atuo como promotor, divulgador e criador de conteúdo educativo e cultural em torno da viola, especialmente da viola nordestina; enquanto no ÁSPERO sou de fato um violeiro narrando histórias ásperas com uma viola em realejo.
Sobre os palcos: é muito difícil fazer apresentações de viola instrumental aqui no interior do nordeste, os lugares que isso pode acontecer estão nas capitais. Apesar de gostar de morar no interior do Piauí, os espaços para a música de não-puro-entretenimento e para as artes em geral não existem. Minha atuação pública até então tem sido de divulgação e exploração educativa da viola e suas pontes culturais como instrumento para a música modal.
15) RM: Quais as ações empreendedoras que você pratica para desenvolver a sua carreira?
Rainer Miranda: Acredito que pouquíssimas. Durante meu período de vida profissional como violeiro tocando em SESCs e festivais não competitivos, era tudo feito com divulgação pessoal direta e com a ajuda de amigos que tinham contatos de lugares em busca de artistas para apresentar ou divulgar. Hoje concentro meu tempo com a viola para o ÁSPERO e para ações culturais como o VÁRIA. Não acredito que meu trabalho como violeiro e/ou professor seja muito “vendável” no cenário do mercado musical atual. Estou em uma posição na qual posso fazer pouca coisa em questão de “mercado” se comparado aos artistas que tem um escritório, uma produtora ativa auxiliando; de todo modo não preciso me colocar nessa engrenagem para continuar fazendo minha viola soar. Minha atuação hoje é voltada para a promoção inclusiva, gratuita e expansiva da música modal e da viola, dentro e fora da universidade, como violeiro e como professor.
16) RM: O que a internet ajuda e prejudica no desenvolvimento de sua carreira?
Rainer Miranda: Ela possibilita que os contatos cheguem mais longe, gente de fora do Brasil ouvindo sua viola, a gente podendo ouvir um Tar do Irã, um Sarod da Índia e ainda ter a oportunidade de trocar mensagens com as pessoas que estão fazendo música desses instrumentos, por exemplo. O mais interessante, penso, é ter contato com pessoas e instrumentos extraordinários que estão em posições na indústria da música; hoje, basicamente, do streaming, completamente marginais. Pessoas, em grande maioria, comuns que acreditam nos seus instrumentos, na sua música e continuam tocando, seja passando sufoco para pagar as contas, seja dividindo seu tempo com um trabalho além da música para poder continuar tocando.
Eu cresci durante a popularização da internet e hoje sou mais pessimista do que era na adolescência. Acredito que a internet tem potencializado a massificação da ignorância, maximizando os ganhos para grandes produtos do entretenimento e sabotando os espaços de democratização de acesso e distribuição da arte. Tudo virou produto e público e, hoje, ser um e ter o outro depende da internet. E quem tem espaço é quem paga propaganda, quem despeja conteúdo nas redes sociais de forma sistemática e se alia a mecanismos trabalhando com isso, tudo para “chegar lá”. Seja onde for, não parece um lugar muito acolhedor.
17) RM: Quais as vantagens e desvantagens do acesso à tecnologia de gravação (home estúdio)?
Rainer Miranda: A diminuição de custos para gravar sua música, planejar uma paisagem sonora é muito menor quando se faz em casa ou com métodos abreviados de um estúdio tradicional. Essa é uma vantagem enorme, sem dúvida. Vejo como ruim a profusão do amadorismo como novo discurso profissional: uma enxurrada de cursos sendo vendidos para autoprodução, propagandas enganosas para fazer tudo rápido, fácil e barato. E com isso muitas empresas se aproveitam e “inventam” equipamentos e softwares cheios placebo para gravação, mixagem, masterização “rápida”. O papel e o lugar da produção musical, que envolve uma ciência complexa e importante da acústica e do áudio, parece ter chegado, assim como chegou à indústria da música, a uma banalização onde o que importa é lucro, sucesso e rapidez. Acho que o lado bom do home estúdio tem a haver com se envolver mais com sua música, tentar produzir sua própria música; para além disso acho que o saldo é negativo para a produção e distribuição musical em geral.
18) RM: No passado a grande dificuldade era gravar um disco e desenvolver evolutivamente a carreira. Hoje gravar o CD não é mais o grande obstáculo. Mas concorrência de mercado se tornou o grande desafio. O que você faz efetivamente para se diferenciar dentro do seu nicho musical?
Rainer Miranda: Toco uma viola afastada de muitas das expectativas em torno da viola e talvez de alguma expectativa da música instrumental contemporânea. Não me vinculei ao ambiente da viola como tradição ou da viola como um instrumento para o estudo da música formal; não me vinculei também aos nichos que a tocam como instrumento de música alternativa, seja de uma nova música popular brasileira ou de sua integração em gêneros reconhecidos da música internacional. Não vendo cursos, não monetizo conteúdos na internet, não participo de festivais competitivos. Escolhi manter minha relação visceral com a viola; não criar intermediários que ultrapassem nosso ambiente de experimentação. Essa opção é contraproducente para quem quer constituir uma “carreira” tal como é pensada atualmente.
Hoje ter uma “carreira” significa ter uma base de seguidores/apreciadores, um “mercado” para sua música, uma estratégia de marketing alimentando redes sociais, tudo isso que os artistas independentes em busca de alguma projeção de mercado se veem obrigados a fazer e os artistas grandes tem tudo isso automatizado e ampliado. Acredito que eu e minha viola decepcionamos da perspectiva do mercado musical, tanto para a produção quanto para o consumo. Acredito na viola e na música como uma experimentação para cultivo do espírito, da criatividade e da educação compartilhada. Claro que no mundo de hoje eu só consigo manter essas renúncias perante os nichos e o mercado da música porque a viola não é mais a parte crítica da equação financeira da minha vida. Há dilemas cruéis para quem vive e faz música e gostaria de não se importar com tudo isso.
19) RM: Como você analisa o cenário da música Sertaneja. Em sua opinião quem foram às revelações musicais nas duas últimas décadas e quem permaneceu com obras consistentes e quem regrediu?
Rainer Miranda: Eu não ouço música sertaneja, ouvi consideravelmente durante um período da adolescência a música sertaneja raiz do sudeste, também chamada de música caipira, e a música sertaneja nordestina. Mas minha análise parcial é de que está tudo muito ruim. O modo de ouvir música hoje para mim é um martírio. A experiência digital, mesmo para mim que sou jovem, é frustrante. A gente quase nem consegue escolher o que vai ouvir, logo já vai pular uma coisa na frente do celular e do computador, na rede social, na plataforma de streaming que só custa X reais para pular a música ou ter acesso a tal álbum de Fulano e Fulana e etc. Se for em tal plataforma o conteúdo é interrompido por X segundos para uma propaganda de tal produto e tocando música de Falado e Falou que você não queria ouvir.
Tudo uma grande vitrine imediata, um “shopping” em aceleração. Acho que toda a música feita nos últimos anos foi sugada para esse modo de operação da felicidade sem fim das mídias de consumo, inicialmente pelo consumo passivo e agora pelo consumo pseudo-ativo, as redes sociais, onde as músicas mais ouvidas são síncopes de que tudo é festa e/ou ostentação. A música sertaneja também se tornou aquilo que tudo se tornou no mercado musical: uma vitrine agressiva de produtos para serem consumidos, cada um com um preço e alguns tem até desconto e delivery.
20) RM: O que lhe deixa mais feliz e mais triste na carreira musical?
Rainer Miranda: A felicidade de encontrar, ver e ouvir as pessoas que amam a música que fazem. A felicidade é sentir as notas vibrando enquanto toco, podendo respirar a música e visitar lugares imaginários, e às vezes reais, com minha viola. Ter a viola como um portal para imaginação e experimentação da música. Acho que a tristeza é diluída em tudo que vem um pouco antes e um pouco depois dessas coisas. Mas é importante sempre sentir um pouco de tristeza em relação à felicidade para não se embriagar com os momentos e lembrar que são passagens e precisam ser vividas no instante em que acontecem.
21) RM: Quais os outros instrumentos musicais que você toca?
Rainer Miranda: Apenas viola; para mim já é muito. Tenho me aventurado em um primo da viola que admiro, o Tar persa; instrumento de cordas pinçadas, possui com pescoço longo e três ordens de cordas duplas. A viola em realejo (e na sineta) tem a afinação muito em comum com o Tar e o uso de palheta/plectro e a concepção de execução.
22) RM: Como você analisa o cenário da música instrumental brasileira. Em sua opinião quem foram às revelações musicais nas duas últimas décadas e quem permaneceu com obras consistentes e quem regrediu?
Rainer Miranda: Muita coisa boa acontecendo fora dos holofotes e espaços de prestígio, muita gente boa tocando de tanto jeito diferente e passando sufoco para conseguir espaço de divulgação e atuação. Concordo com colegas sobre a música de viola instrumental ser um dos acontecimentos mais empolgantes na última década por aqui. É algo original que possui marcas regionais interessantes. Eu citaria os movimentos recentes de violeiras e violeiros pelo Brasil, é coisa ótima e incorporam a música instrumental com muita atenção. O circuito Violada; que tive a alegria de conhecer pelas violas impecáveis de Marina Ebbecke, Gabriel Souza; também o circuito Dandô, o movimento Rio de Violas, a articulação do Violas ao Sul.
23) RM: Quais os vícios técnicos o violeiro deve evitar?
Rainer Miranda: Eu diria que um violeiro, uma violeira deve evitar pensar que sua viola é a única que existe, que suas técnicas são as melhores, que seu repertório é o melhor. Deve-se lembrar que somos apenas um grão de areia no vendaval da vida. A música, e mesmo a viola, serão sempre mais antigas e diversas do que nossas supostas grandezas irrisórias. A viola é um apanhado de particularidades, isso não a torna incomunicável, mas faz dela um instrumento que exige sensibilidade intelectual e artística para lidar com a diversidade que ela contém e a diversidade que a ultrapassa. A viola é sempre uma aventura plural.
24) RM: Quais os erros no ensino da Viola?
Rainer Miranda: Acho que nosso erro geral é às vezes entender e ensinar viola como instrumento unificado, com técnicas coesas de execução, um repertório específico e narrativa oficial comum. Não existe essa viola “una”. A viola que está mais perto da padronização, graças à indústria fonográfica, à indústria de instrumento e a escolarização relativamente consolidada, é só a viola caipira; do Sudeste e Centro-oeste digamos. Arrastar o ensino de viola para essa padronização específica da viola caipira faz esmaecer a pluralidade das violas do/no Brasil. Claro que o lado bom dessa tentativa de unificação é “imprimir” uma identidade comum ao instrumento e amenizar o rolo compressor do ensino canônico de música, mas não sei quanto o ensino de música se adapta à viola e quanto acontece o contrário. Tenho a impressão de que a viola se adapta mais ao ensino de música do que o contrário. E esse funcionamento da musicologia canônica europeia, em que os instrumentos importam pouco, importante é a teoria e a leitura musical. É ruim neste aspecto, pois torna o instrumento apenas um contexto, um plano de fundo.
Na minha perspectiva de violeiro modal e professor não músico, acredito hoje em um pouco mais de imaginação e coragem para o ensino da viola visando manifestar sua diversidade: assumir as afinações, as particularidades regionais, as técnicas e se a teoria musical canônica não der conta de dialogar com isso, deixemos essa teoria de lado sempre que possível. Estou sendo utópico, claro. Mas acredito que a viola, e tantos instrumentos populares, é mais especial e importante do que a teoria musical sobre ela. É possível extrair teoria musical da viola, mas acredito que a teoria que conseguimos extrair da viola não é a teoria que emprestamos da música europeia escrita. O desafio é grande, sei disso. Os pesquisadores e professores de música envolvidos com o ensino de instrumento estão sempre atrelados à teoria musical canônica, não é tão simples se aventurar fora dela. É mais ou menos como pensar um Cientista Social tentando se aventurar fora das questões do “social”. É possível, mas tem um preço.
Acredito em uma saída pela tangente: enfraquecer um pouco o poder da teoria musical canônica a qual estamos submetidos com o uso e aplicação de teorias musicais alternativas que possam dialogar com a viola e libertar um pouquinho sua pluralidade no âmbito do ensino e da prática musical. Acredito especialmente nos modelos teóricos e práticos da música modal, que ao contrário da teoria musical canônica, vêm colada nos instrumentos e não antes deles. As teorias musicais em torno do modalismo árabe, persa e hindu são muito interessantes. Tenho me debruçado sobre a viola em realejo, uma viola nordestina, com empréstimos contextualizados da música Persa. A música persa e a viola em realejo têm mais coisas em comum: técnica melódicas, uso de plectro/palheta, afinação, do que possuem a viola em realejo e o violão ou a viola caipira em cebolão ou em rio abaixo. O Adelmo Arcoverde tem uma reflexão nessa direção também com a música em torno da cítara indiana e a concepção de viola nordestina que ele desenvolve há anos.
Vou recorrer a um clichê das violas nordestinas: como insistia Luis Soler, as violas nordestinas em geral têm um “mito antigo” de que são violas de espírito mouro, não tem? Pois bem, levemos isso a sério e vamos estudar e trazer a música dos povos ligados à memória dos mouros para nossas violas nordestinas. Essas pontes culturais só tem a enriquecer e exercitar nossa diversidade, seja para amenizar nossos mitos ou para potencializar o que eles intuem. É um bom começo para conhecer efetivamente como é a música dessas culturas e como elas poderiam dialogar com a nossa. Acho que o ensino e o conhecimento da viola têm a ver sempre com isso: criar e explorar particularidades. Nesta perspectiva não teríamos, portanto, um ensino unificado de viola no Brasil, mas sim vária vertentes de ensino de várias violas no Brasil, concepções e metodologias diversas. Sem ter exatamente a intenção, acabei me envolvendo com tudo isso a partir do VÁRIA e do Caderno de uma viola em realejo.
25) RM: Você poderia falar um pouco sobre a relação entre a personagem do “mouro” e a viola no nordeste do Brasil?
Rainer Miranda: Acredito que muita tinta correu sobre isso sem chegar a uma “conclusão”. Olhando para o período mais caloroso da indagação sobre o “mouro” e as artes populares do nordeste – talvez na última metade do século XX – vemos personagens envolvidas com o movimento Armorial (sobretudo movimentos artísticos da Paraíba e Pernambuco) revisitando o “mouro” e interpretando o que havia sido dito até então – principalmente no que toca a figura de Câmara Cascudo – como uma impressão ligeira dos traços do canto gregoriano e de antigas práticas artísticas do cristianismo que possuem um sabor musical menos ocidental do que imaginado. Como citei anteriormente, Luis Soler é a figura explícita da questão, embora Ariano Suassuna, o Quinteto Armorial, Câmara Cascudo, José Siqueira, Guerra Peixe, por exemplo, tenham deixado marcas importantes no debate. Contudo, essa relação do “mouro” com a música nordestina – e especialmente com as violas no Nordeste – foi difundida efetivamente fora dos debates acadêmicos e de crítica cultural. Foi levada a sério como mito fundador na cantoria, no ambiente de poetas e repentistas nordestinos, especialmente na cantoria com viola. Creio que um dos principais nomes de divulgação desse mito fundador é Geraldo Amâncio, mas todo poeta da cantoria tem consciência dessa narrativa e a aciona em um ou outro momento.
Apesar dessa relação com “mouro” engatar muito bem no imaginário musical nordestino, o termo é polissêmico na língua portuguesa, especialmente quando pensamos na história de seu uso no Brasil colônia. O termo foi utilizado para nomear migrantes diversos que não se encaixavam no estereótipo cristão europeu – judeus, árabes, ciganos, etnias diversas de tons de pele mais escuros. Popularmente, ainda hoje, o termo “mouro” é usado para designar características estereotipadas, sobretudo culturais, que misturam traços árabes, judeus, indianos e de povos da costa e do norte da África, etc. E ele não é um termo muito legal com as culturas as quais ele faz referência; é só um “borrão” genérico que acomoda um conjunto aleatório de estereótipos de vários povos diferentes, jogando uma diversidade imensa num saco só.
Sem dúvidas é um termo que tem sua importância no imaginário da cultura popular brasileira, especialmente na cultura popular nordestina. Mas como vestígio a ideia do “mouro” para as violas nordestinas é genérico. Não houve de fato uma experimentação dos modos musicais nordestinos aproximados dos modos musicais clássicos dos povos árabes que construíram e permaneceram em Al-Andaluz por cerca de 8 séculos (hoje parte de Espanha e Portugal). Cito esse exemplo porque ele comumente é citado como “prova” da relação dos “mouros” com o nordeste brasileiro – a coisa dos fluxos de migrantes ibéricos no Brasil colônia.
Não existe, por exemplo, “a música árabe”, “a escala árabe”, etc; os modos musicais árabes são dezenas, diversos modos que variam de povo para povo que se pensa e se considera árabe – sem falar na diversidade cultural dos povos pré-islâmicos que estão no arcabouço cultural árabe e não partilham das formas clássicas musicais árabes. Para não me alongar eu diria que o “mouro” tem a ver com as violas nordestinas sim. Mas se quisermos levar essa relação adiante (e seriamente) é importante buscarmos conhecer as culturas musicais desses povos referenciados como “mouros” – que são muitos e têm características diferentes de nossa cultura musical. É uma boa oportunidade para desapegarmos um pouco dos estereótipos e deixar de lado a comodidade cultural de que “somos tal coisa e ponto final”. A gente nunca sabe muito bem o que é – e ainda bem, né? Ao perseguirmos nossos mitos fundadores talvez encontremos bons caminhos para a sempre necessária reinvenção cultural.
26) RM: Tocar muitas notas por compasso ajuda e prejudica a musicalidade?
Rainer Miranda: Sinceramente não sei. Talvez a ideia apressada de que “tocar bem”, para muitas pessoas, incluindo alguns músicos, é tocar rápido ou tocar mais notas, tenha vigorado no senso comum graças à espetacularização da performance musical. Aquela coisa de “causar impacto”, algo “super humano”, quase um “super poder” e às vezes é algo frio, atropelado. Tem situações que uma nota diz mais do que três, quatro, cinco ou nove; às vezes tocar menos é se emocionar mais. Não acredito que a velocidade, a aceleração de tudo; em um mundo cada vez mais imediatista, seja legal. Para a música creio não ser diferente; tocar uma nota também é sentir ela vibrar, aproveitar e sentir que ela está ali com você durando um tempo específico. É algo mágico! Talvez a aceleração e a pressa seja porque não é a magia da circunstância que importa.
27) RM: O que você diz para alguém que quer trilhar uma carreira musical?
Rainer Miranda: É preciso enfrentar muitos dilemas. A renúncia não deve ser motivo de vergonha, bem como a glória nem sempre motivo de orgulho. Quando a carreira tem menos a haver com música do que com sucesso eu diria que é preciso coragem e paciência para ter, ou deixar de ter, uma carreira musical.
28) RM: Quais os principais erros na metodologia de ensino de música?
Rainer Miranda: Como disse, não sou formado em música e prefiro não me pensar como músico ou professor músico. Estou envolvido em caminhos experimentais pela música modal envolvendo a viola. As metodologias empregadas nesses caminhos são bastante diferentes das metodologias do ensino de música habitual, as relações são pontuais e, diria, difíceis de comparar já que são concepções contrastantes. Em linhas gerais, enquanto uma, o ensino de música canônico, está apoiado na harmonia como contexto, a outra foca na melodia como particularidade musical e usa a repetição (e a intuição) de intervalos musicais como plano único e imediato. Enquanto no sistema musical canônico essas situações seriam projetadas sobre um sistema de alteração e transformação das relações entre esses intervalos.
29) RM: Existe o Dom musical? Qual a sua definição de Dom musical?
Rainer Miranda: Talvez exista e todos possam acioná-lo; depende da vibração para desbloqueá-lo. Tem gente que parece mais inclinada a vibrar de maneiras extraordinárias. Música é vibração, então acho que se há dom é um monte de vibração por aí, atravessando todo mundo, mas afetando diretamente alguns mais, outros menos dependendo do momento de espírito em que se encontram.
30) RM: Qual a sua definição de Improvisação?
Rainer Miranda: Um estado de entusiasmo e tensão. E tensão entendida como uma mistura entre cautela e curiosidade. A tensão é muito importante porque ela mantém um compromisso ativo com o que está sendo tocado/improvisado. Não se toca simplesmente “do nada”, sempre há um compromisso, consciente ou não, das linhas que vão surgindo no instrumento. Por estar ligado ao modalismo musical, vejo a improvisação como uma aventura sobretudo narrativa, melódica e de repetição. Uma busca cuidadosa de palavras para uma história que está sendo contada e repensada a todo momento, cujo desfecho é possível imaginar sem saber das nuances.
31) RM: Existe improvisação de fato, ou é algo estudado antes e aplicado depois?
Rainer Miranda: Depende de onde estamos pensando e do que estamos chamando de improvisação. A improvisação tal como é entendida no vocabulário e na prática musica canônica, seja na música erudita ou nos gêneros musicais que se institucionalizaram na gramática musical habitual, está intimamente ligada a coisas como campo harmônico e as transformações entre estruturas e notas musicais com base, mais próximo ou distante, de estruturas “tonais”. Nesse sentido as regras de improvisação que estão postas nesse ambiente já são esperadas e, por vezes, previsíveis. Grandes improvisadores de nossa música ocidental escrita, erudita ou popular, estudam visando estratégias de performance para a prática do improviso.
Eu acredito que em ambientes musicais não ligados à teoria musical vigente a improvisação pode ser algo muito diferente, como por exemplo a repetição dependente da homofonia. A teoria musical canônica desconhece muitas filosofias musicais com práticas e pensamentos sobre improvisação bastante sofisticados em suas simplicidades.
32) RM: Quais os prós e contras dos métodos sobre Improvisação musical?
Rainer Miranda: Acho que no sentido musical vigente improviso supõe muita transformação, muita variação, tudo bem coladinho no contexto: na harmonia. Isso não é ruim para essa concepção musical, obviamente. Talvez o ruim seja o improviso de outras filosofias musicais serem entendidos como experiências “simplistas”. Como disse, por exemplo, a repetição é também improviso. Eu diria, como violeiro modal, que é bastante complexo improvisar pela repetição. Creio que isso seja uma das maiores lições do universo da música modal para as concepções musicais não modais.
33) RM: Quais os prós e contras dos métodos sobre o Estudo de Harmonia musical?
Rainer Miranda: Não saberia dizer. Como disse, estou mergulhado na música modal. O estudo e a preocupação com a harmonia, sendo ela parte íntima da música ocidental canônica, mas praticamente ausente na música modal, não está no meu horizonte.34) RM: Quais os métodos que você indica para o estudo de leitura à primeira vista?
Rainer Miranda: Se for para ler através de uma perspectiva “modal” eu sugeriria: tocar para o espelho! É muito importante e curioso ver seu corpo interagindo com o instrumento, seus trejeitos para chegar às notas, entender sua postura e como você está adquirindo memória corporal para obter alguns sons do seu instrumento. Conhecer seu instrumento, saber tateá-lo bem, encontrando macetes de como as notas soam diferentes com pequenas mudanças. Acredito que essa é a primeira leitura que se deve ter com um instrumento musical: senti-lo, vê-lo direta ou imaginariamente enquanto instrumento e instrumentista estão em contato, fazendo som.
Sobre a leitura de música escrita, eu diria, com todo respeito, que não é algo muito importante como somos por vezes levados a crer. Acredito que métodos de escrita alternativos (Jianpu, tablaturas simplificadas, métodos numéricos) são mais interessantes para pensar a escrita musical do que a literacia do pentagrama. O que é uma coisa criada dentro de uma perspectiva muito ocidental e especificamente europeia. Muitas das escritas alternativas são “estreitas” e nos aproximam mais dos instrumentos, enquanto a escrita do pentagrama é algo muito amplo, muito “universal”; só que de universal não tem nada, não é? Gosto especialmente das tablaturas e alguns apoios numéricos para compreensão de intervalos como método de escrita. E quando ele é necessário como exemplificação prática. O apoio numérico é muito interessante porque é fácil incorporá-lo e adaptá-lo ao instrumento.
35) RM: Como chegar ao nível de leitura à primeira vista?
Rainer Miranda: Não sei. Presumo que estudando muito material de leitura musical canônica. É um horizonte distante para mim que estou mergulhado na música modal e interessado em teorias musicais alternativas.
36) RM: Como você analisa a cobertura feita pela grande mídia do cenário musical brasileiro?
Rainer Miranda: Muito ruim, assim como a cobertura de muitas coisas no Brasil. É notícia ruim para todo lado. Nem por um segundo a cobertura midiática deixa de manter o foco na estrutura da monocultura musical que tem sua enorme parcela de culpa em nos aconchegar nesse mar de ignorância e negacionismo. O trabalho de cobertura real da música feita no Brasil é feito por iniciativas e mídias independentes, pequenos portais, associações e instituições comprometidas com a democracia do espaço musical e com o espírito da arte como algo além do puro entretenimento. Esse trabalho paralelo tem mantido a esperança, criando acervos de pesquisa e informação inestimáveis sobre a pluralidade e a vida musical de tantos artistas. Veja só a RitmoMelodia!
37) RM: Qual a importância de espaço como SESC, Itaú Cultural, Caixa Cultural, Banco do Brasil Cultural para a música brasileira?
Rainer Miranda: São espaços cruciais. Acredito que nossa catástrofe de massificação só não tem sido pior porque o espaço cultural dessas instituições existe.
38) RM: Quais as principais diferenças e semelhanças entre a Viola, o Violão de 6, 7 e 12 cordas?
Rainer Miranda: Morfologicamente falando, todos são da família das guitarras: da classe de instrumentos que possuem um bojo em formato de oito e um braço proporcional ao comprimento do bojo. Musicalmente falando, no escopo do nosso mundo ibero-americano recente, do século XIX para cá, são instrumentos muito diferentes.
A viola, que é muito antiga, já está lá no século XVI no mundo ibérico e também no Brasil colonial. Ela se desenvolveu de muitos jeitos aqui e lá também, paralelamente. O violão é um instrumento mais novo, do século XIX, viajando o mundo e se radicando nos lugares como um instrumento companheiro dos ciganos, o Brasil não é exceção. O violão ganha o mundo popular das cidades e de uma parte importante do mundo rural também.
Em linhas gerais podemos dizer, hoje, que a viola mais conhecida e executado no Brasil (e também das violas de Portugal) é a viola de dez cordas, de cinco pares de cordas metálicas. A viola de doze cordas com seis ordens esteve aqui também mas encaminhou para o desuso. Atualmente o Junior da Violla se dedica na popularização e revitalização da viola de doze cordas com seis ordens. Há ainda a viola de doze cordas com cinco ordens, ondem ordem 5, superior, possui três cordas e a ordem 4 possui apenas uma corda, as ordens restantes mantendo duas cordas.
Tecnicamente falando todas as violas no/do Brasil são parecidas, o que imprime diferenças fundamentais é onde elas estão (região), quem está tocando (as técnicas do lugar) e qual sua função social-musical (qual seu contexto de performance). A viola é um poço de diversidade e curiosidades difícil até de descrever, porque a gente até perde a noção de quão diversa ela é, foi e, espero, continua sendo no Brasil.
O violão é um instrumento de seis ordens singelas, utilizando cordas metálicas ou cordas de tripa/sintéticas, e no Brasil tem um papel fundamental para a música urbana e para a música em geral nos dois últimos séculos. O violão de sete cordas é criação russa, mas veio parar aqui no Brasil. O Yamandu Costa pensou um documentário bem legal sobre isso. O violão de doze cordas eu não sei da origem, mas é frequentemente atrelado à música rural nos Estados Unidos no começo do século XX. Ele tem uma incursão bastante importante no Blues, no Jazz, no Rock, no Bluegrass. Aqui no Brasil ele chega na esteira do rock’n roll e da música folk norte americana.
Diferentemente do que se pensa, violão e viola não são o mesmo instrumento e existe uma distância grande entre eles. Mesmo o violão de doze cordas e uma viola de doze cordas são instrumentos completamente diferentes. O violão é um instrumento com muita padronização, tudo bastante cristalizado: a construção, afinação, execução. A viola é um instrumento que tem colocado problemas para a padronização. Eu acho isso maravilhoso; ela possui dezenas de afinações, inúmeras técnicas diferentes, muitas “escolas” que são às vezes antagônicas.
É importante conferir a música e os trabalhos de violeiros pesquisadores como o Ivan Vilela e o Roberto Corrêa que produziram coisas ótimas sobre essas conexões históricas e musicais da viola. Se não me falha a memória o Ivan está participando de em um projeto Brasil-Portugal e a viola é uma peça importante da pesquisa, o Ivan tem ótimas reflexões sobre o lugar da viola na história da música brasileira. O Roberto é peça fundamental na pesquisa de viola no Brasil, ele lançou recentemente a tese de doutorado com muito material de pesquisas recentes e antigas dele. O Fernando Deghi também tem uma atuação importante para essa relação do desempenho histórico da viola no Brasil, bem como na concepção de uma viola de concerto, ele teve também um papel central no estabelecimento de padrões de encordoamento da viola no Brasil.
39) RM: Quais os prós e contras de Festival de Música?
Rainer Miranda: Não sou apreciador dos festivais por causa da competição. Acho que o festival, pela competição, ressalta e encoraja mais coisas ruins da existência artística, arrogância e individualismo, do que coisas boas. Aprecio muito as mostras, as feiras, os circuitos, os encontros que tentam equalizar os egos e forçar algum tipo de colaboração.
40) RM: Qual a importância da Musicologia?
Rainer Miranda: Acredito que ela tem um papel importante na história da música ocidental. Ela incarna como fundamento a concepção da música como processo expressivo analisável: é possível cindir as partes, buscar as menores unidades para decomposição e recomposição do evento musical como um todo, especialmente dele como objeto-obra. A parte ruim disso é que ela acabou “emplacando” seus métodos de fazer análise (e de valorar a música) como se fossem os mais refinados e universais quando, na verdade, não há método mais refinado e nem os mais universais.
A musicologia ocidental nasceu da música de povos da Europa e tudo que lhe importa é importante para a música desses povos. A música de outros povos não se encaixa facilmente nos ditos métodos universais da musicologia canônica e isso provoca duas coisas: 1) força direta e indiretamente a “adaptação” das músicas de outros povos do mundo aos métodos da musicologia (e não o contrário); 2) abre campo para um longo e desagradável processo de colonização do jeito de conceber e estudar um fenômeno tão diversos como a música. É algo análogo ao que acontece com todo nosso conhecimento científico e intelectual: eles mais colonizam os outros conhecimentos do que os trazem para perto. Esses conhecimentos com muito poder institucional, deliberadamente ou não, não se reconhecem como conhecimentos tão locais e pontuais quanto os outros sobre os quais eles avançam. É uma velha questão para as Ciências Humanas, embora a reflexão por aqui tenha começado efetivamente apenas há alguns anos no âmbito da Musicologia.
41) RM: Disserte sobre essa afirmação do Nietzsche: “Sem a música o mundo seria um erro”.
Rainer Miranda: Difícil controlar o simulacro da vida, não é? Às vezes nossa breve existência se afunda na ansiedade de tatear o que sentiremos perante as coisas e, repentinamente, somos atravessados pelas coisas do mundo (e além dele) antes de conseguirmos compreendê-las. A música é um caminho de experimentação do controle dessa ansiedade que nos habita. O que importa é o justo e passageiro instante que as vibrações musicais tomam conta de nossas sensações, misturando-as um pouco e permitindo que deixemos de nos importar, por um lapso, com nosso imediatismo latente. Conseguimos deixar de habitar nossas preocupações e nossa arrogância quando a música nos atravessa. E por isso ela é tão indescritível: ela não é só uma ocasião, ela é um acontecimento. Conseguimos sentir tudo, compreender pouco e descrever quase nada. Rumi, o grande poeta Persa, nos diz isso há oito séculos.
42) RM: Quais os prós e contras de ser multi-instrumentista?
Rainer Miranda: Minha experiência é só com a viola de dez cordas. Devido à minha relação prática e teórica com a música que aprecio e faço, percebo a viola não como um instrumento, mas como um caminho de devoção pela música. A música é algo imenso, gigantesco; mas ela acontece nas menores coisas: em um assovio, em um ritmo de batida de martelo, em um instrumento musical. O instrumento musical é capaz de moldar seu espírito a ponto de você e ele se confundirem como unidade da experiência musical. É uma relação indescritível e, penso, pouco técnica. Tem a haver com paixão e aceitação: apaixonar-se pelos caminhos que você pode com ele trilhar e ter de aceitar que a maior beleza da caminhada é conhecer apenas uma parte dos caminhos dos muitos que existem. Acredito que aceitar e entender um instrumento musical é muito difícil; é uma alegria e uma advertência de que a beleza e a sinceridade da música estão na limitação. Um instrumento musical ilimitado não é um instrumento musical, é um dispositivo autoritário que exclui e debocha da diversidade. Quando nos dedicamos, nos apaixonamos e aceitamos um instrumento, nos confundimos com ele e abraçamos a limitação como dádiva e não como maldição.
43) RM: Quais dos seus conceitos que convergem e divergem com de outros pesquisadores de Viola?
Rainer Miranda: Muita gente boa estuda e estudou a viola na academia e fora dela: pesquisas institucionalizadas, pesquisas independentes. Eu li muitas pesquisas sobre/de viola, fui até objeto de algumas quando mais jovem, e diria que hoje, como violeiro e professor fazendo incursões de pesquisa com a viola, meu lugar é muito experimental. Experimental não no sentido do gênero musical; experimental no sentido de enveredar por caminhos teóricos e práticos estranhos para o contexto da música de viola e da pesquisa com ela. Hoje meu caminho é o de estabelecer uma conversa entre a viola de dez cordas afinada em realejo (e na sineta) e a música persa, especialmente com o Tar. Acredito que sejam instrumentos e situações musicais afins capazes de realizarem empréstimos respeitosos e muito interessantes.
Acredito que essa conversa não passa pela “massa” da teoria musical habitual. É um projeto de viola? Sim e até mais do que isso: é um projeto de conexão e criação cultural pela música modal com a viola. É uma ponte cultural Pérsia-Piauí.
Isso me torna uma personagem estranha no cenário de pesquisa e ensino de viola. Fico assim relativamente isolado, distante de grandes debates ou de correntes de discussão em torno da viola. Vou desenvolvendo ações no tempo e na medida em que posso, publicizando-as tanto como material acadêmico de extensão/pesquisa (com o VÁRIA) quanto como material artístico (com o ÁSPERO). Mantenho, entretanto, um bom contato com pesquisadores de viola pelo Brasil; procuro me inteirar das produções acadêmicas e artísticas semestralmente. Tem muita coisa sendo feita.
44) RM: Qual seu conceito para música sertaneja caipira?
Rainer Miranda: Por não me sentir íntimo dela prefiro não definir. Diria apenas que nada tem a haver com o rótulo “sertanejo” ou “música sertaneja” que servem de classificação nas plataformas de streaming e no mercado musical. Felizmente tem muita gente empenhada em defendê-la da pasteurização e do imediatismo do mercado musical.
45) RM: Quais suas considerações sobre a cultura regional do Piauí?
Rainer Miranda: Sobre o Piauí: eu estava lendo sobre os irmãos Clodo, Climério, Clésio e é recorrente um sentimento; que para mim, radicado em São Raimundo Nonato – PI, ainda persiste na maioria dos piauienses. Claro que isso tem a haver com o impacto avassalador da indústria musical que não deixa pedra sobre pedra e apaga a memória e a valorização da história artística/popular das pessoas. O sentimento é o seguinte: de que o Piauí não tem “a sua cultura”. E com todo respeito ao Luiz Gonzaga, a figura dele como nordestino de Pernambuco emplacou na indústria e na música popular como “A figura nordestina” e todos que não se conectassem com essa “imagem” não seria legitimamente nordestino.
E no caso do Piauí, é um Estado de história (e atualidade) rural. Nunca houve centros de poder, gravadoras, distribuidoras da indústria fonográfica atuantes no Piauí. A produção das artes populares piauiense não faz parte da indústria do rádio e do disco. A vida das pessoas no Estado sempre esteve desconectada das “capitais” culturais nordestinas, com especial dominância de Recife – PE nas últimas décadas. Isso gera uma impressão muito ruim de que o Piauí é um Estado culturalmente “vazio”, quando na verdade é o contrário. É um Estado de cultura efetivamente popular, vivida e feita na roça, no interior, tudo muito vivo! Mas isso está na vida simples e rural das pessoas, não nos discos, nas rádios. Não houve essa mercantilização da cultural popular das populações do Piauí. Acho que o melhor exemplo disso são os Reisados, as Rodas de São Gonçalo, o Boi (que é piauiense) e claramente os aboios. E parafraseando uma parte das cantigas do Boi: “O meu boi morreu, o que será de mim, manda buscar outro, menina, lá no Piauí”.
As violas no Piauí também estavam imensas nessa condição estreitamente rural e comunitária. Claro que a cantoria é algo muito forte no Piauí, mas a cantoria é já um aspecto que conseguiu “espaço” na indústria fonográfica e no mapa das festividades das cidades importantes pelo Nordeste. A cantoria não é, por excelência, uma manifestação rural comunitária. Ela é algo que se conecta a esse ambiente rural sem dúvidas, mas a personagem principal é o cantador, a pessoa dele e não a cantoria. Quando nas manifestações comunitárias é o contrário, a personagem principal é a manifestação e não as pessoas que as realizam.
46) RM: Quais os seus projetos futuros?
Rainer Miranda: Estou aprendendo a viver com prazos curtos para não me embaralhar nas expectativas do futuro do pretérito. Então eu digo que para este ano de 2021 quero manter o VÁRIA funcionando. Organizar e lapidar o material desenvolvido para um novo livro (ou website, ainda não sei qual melhor formato) de prática e experimentação (um “método”, apesar de não gostar do termo) da viola em realejo, uma viola nordestina, modal, conversando com a música Persa. Um repertório nordestino e persa para a viola em realejo instrumental, solo. Ele é parte do conteúdo mais experimental que não entrou no Caderno de uma viola em realejo lançado em junho do ano passado.
Pretendo lançar um álbum do ÁSPERO este ano também; a história está escrita e as melodias entoadas. Se possível quero concretizar o plano, que não pude em 2020 devido à pandemia do Covid-19, de lançar o álbum fisicamente como vinil de 10″. Junto das pessoas do movimento Viola Instrumental Nordestina quero construir um outro evento, seja presencial (seria ótimo, mas dependerá da vacina e das condições sanitárias em que estivermos) ou um outro evento online, um disco coletivo talvez. Gostaria também de escrever um artigo sobre minhas ações com a viola em realejo.
47) RM: Rainer Miranda, quais seus contatos para show e para os fãs?
Rainer Miranda: [email protected] | [email protected]
| www.aspero.link – onde concentro parte de minha viola autoral. E o projeto VÁRIA – www.varia.univasf.edu.br , que concentra minhas ações culturais com a viola como via de extensão universitária. Lá estão disponíveis os radiofônicos, o “método” da viola em realejo (Caderno de uma viola em realejo) e outros conteúdos do projeto.
Canal Vária – Artes e Violas na Caatinga: https://www.youtube.com/channel/UC3BzjJ0eWa9A9iAXsQYJAlQ
Playlist Caderno de uma viola em realejo: https://www.youtube.com/watch?v=rv1YPFB9DKk&list=PLo1jiwmWKnQb0Ar12caxCBlJyPooZm1yb
Playlist Comentários de ressonância #1: sobre a realejo e a sineta: https://www.youtube.com/watch?v=BeiQjxb9qi0&list=PLo1jiwmWKnQbq2_q3ZZNEIlEwKFrL8qnG
Canal Viola Instrumental Nordestina: https://www.youtube.com/channel/UCEmbKIc0qKid20hIPFna3hw
Playlist Primeira Mostra de Viola Instrumental Nordestina: https://www.youtube.com/watch?v=yHtji_pS-Gw&list=PLkrGoTLVSbfzKbyDqaVBRBwvPBLWKtCbc
Comentários de ressonância #1: sobre a realejo e a sineta: https://www.youtube.com/watch?v=BeiQjxb9qi0
Comentários de ressonância #2: o tal do Tar (persa): https://www.youtube.com/watch?v=kpsrcx7eX7Q
Comentários de ressonância #3: sobre microtons: https://www.youtube.com/watch?v=FvrrZt5EPws
Tese Sobre o socius e as séries mecânicas em pdf:
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/11479?show=full
Tese O regime fabril-artesanal de violas paulistas em pdf: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/7371
O Caderno de uma viola em realejo em pdf: https://varia.univasf.edu.br/caderno-de-uma-viola-em-realejo